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Negacionismo: O Falso Galileu – Parte I: Posando de Vítima

Grafitti de Banksy: “Eu não acredito no aquecimento global” Foto Duncan Hull/Flickr

Nem tudo o que parece é. Bicho-pau não é graveto. Negacionismo não é uma “visão científica alternativa”.

Poucas lorotas negacionistas são tão cínicas quanto a comparação que alguns deles fazem de si mesmos com Galileo Galilei e o processo do “Santo Ofício”, isto é, da inquisição que quase o condenou à fogueira. Afinal, assim como na natureza, em que um bicho-pau não é um graveto, mas faz de tudo para parecer um, os negacionistas posam despudoradamente de vítima, quando seu papel é justo o oposto.

Sim, o discurso é bem montado: é como se fossem vítimas de perseguição de “inquisitores” que querem “impor um consenso” e calar os “hereges”, mas a analogia só encontra algum eco porque as pessoas desconhecem quase que por completo a história da Ciência do Clima, o que será a principal questão abordada nesta Parte I (a parte II será dedicada às acusações bizarras de censura, boicote, etc. que os negacionistas tentam imputar à comunidade científica).

De Fourier a Planck, a Ciência do Clima de mãos dadas com a Física Moderna

Dispositivo utilizado por John Tyndall para medir a absorção de radiação infravermelha por gases.

A hipótese de que a atmosfera terrestre poderia exercer algum papel de controle na temperatura planetária é da década de 1820, com Fourier, então podemos até atribuir a ele a ideia de um “efeito estufa”. Mas apenas 3-4 décadas depois, de maneira independente, Eunice Foote (hoje sabemos que ela foi a primeira a reportar esse tipo de medida) e John Tyndall mostraram, em laboratório, que há gases que interagem com o calor, ou seja, foi aí que emergiram evidências “duras” a favor da ideia de Fourier. Ficou comprovado desde então que há gases, como o CO₂ e o vapor d’água, que absorvem radiação infravermelho. Hoje, é um experimento trivial, que pode ser repetido em laboratório com montagens bastante simples e didáticas, como neste vídeo.

Em paralelo, avançavam pesquisas em radiação térmica e não muito tempo depois, Stefan descobriu a relação entre radiação emitida e temperatura (hoje conhecida como Lei de Stefan-Boltzmann): a irradiância é proporcional à quarta potência da temperatura absoluta (isto é, na escala Kelvin). A lei de Wien, que diz que o comprimento de onda de máxima emissão é inversamente proporcional à temperatura absoluta e a relação de Stefan-Boltzmann são ambas empíricas e são conhecidas por precederem a Lei de Planck, pontapé inicial da Física Quântica. Ou seja, a história original da Ciência do Clima está intimamente ligada à própria revolução científica do final do século XIX e início do século XX.

Ora, rejeitar o entendimento de como os gases de efeito estufa interagem com a radiação como fazem alguns negacionistas constitui rejeitar uma parte enorme do escopo da chamada “Física Moderna”, que representou um avanço substancial no nosso entendimento do mundo, com a Relatividade e a Quântica. É absolutamente impossível, a não ser por ignorância extrema ou desonestidade aberrante, negar seletivamente a Ciência do Clima e aceitar esse escopo que, por sinal, está por trás de um sem número de tecnologias que hoje usamos repetidas vezes em nosso dia-a-dia.

Arrhenius, o Eratóstenes do Clima

Eratóstenes de Cirene não apenas mostrou que a Terra era (aproximadamente) esférica, como calculou seu raio, dois séculos antes de Cristo.

Na esteira das medidas de Foote/Tyndall e das relações empiricamente descobertas por Stefan e outros físicos, veio Arrhenius (sim, o mesmo dos ácidos e bases da Química do Ensino Médio). Com base no conhecimento do final do século XIX, ele estimou que duplicar o CO₂ atmosférico levaria a um aquecimento de 4-5°C (ou que reduzi-lo à metade provocaria um resfriamento de mesma magnitude, o que serviria uma explicação para as recém-descobertas eras glaciais).

Esse cálculo de Arrhenius deu origem ao conceito ainda hoje utilizado de “sensibilidade climática de equilíbrio” que é justamente definida como a resposta do sistema climático (em termos de variação de temperatura) à duplicação da concentração de CO₂. O que tem de especial nessa conta, para além das conclusões que dela viriam (inclusive de potencial influência antrópica sobre o clima) é que, em 1896, com “lápis e papel”, Arrhenius não ficou tão longe senão da melhor estimativa de hoje, pelo menos do seu limite superior (a sensibilidade climática é estimada, no 5º relatório do IPCC, como entre 1,5°C e 4,5°C). Considero comparável com o feito de Eratóstenes, o grego que estimou o raio da Terra dois séculos antes de Cristo, com varetas e carroças.

De Eratóstenes a Arrhenius, aprendemos que a Terra é aproximadamente esférica, com uma atmosfera que não apenas a recobre, mas que controla sua temperatura a partir da concentração de CO₂, mas em tempos de terraplanismo, o negacionismo climático parece fichinha…

O “Debate” já Aconteceu!

A cara do Sid quando alguém diz que as “eras do gelo” são argumento contra o aquecimento global antrópico

“Apesar de o oceano (…) agir como um regulador de enorme capacidade, reconhecemos que a percentagem do ‘ácido carbônico’ [como comumente chamavam o CO₂] na atmosfera pode, pelos avanços da indústria, mudar num grau considerável no curso de poucos séculos”. Essa foi a conclusão a que chegou Arrhenius em 1906, num texto escrito para o público em geral.

Evidentemente Arrhenius foi contestado, como acontece com toda ideia científica revolucionária. Até porque “afirmações extraordinárias demandam evidências extraordinárias”. Muito debate aconteceu sobre o papel do CO₂ e do vapor d’água, na baixa e na alta troposfera. Knut Angstrom, por exemplo, teceu críticas ao trabalho de Arrhenius (sua ideia era a de que o efeito do CO₂ já estaria “saturado”). Arrhenius o replicou duramente em mais de uma publicação, mas percebam: esse debate sempre se deu em cima de hipóteses testáveis.

E o que aconteceu quando tais testes foram feitos? A realidade deu razão a Arrhenius. Em 1931, Hulburt mostrou que o CO₂ disparava o que conhecemos hoje como “feedback do vapor d’água”, retroalimentação climática fundamental (telegraficamente, o CO₂ aquece a atmosfera, que passa a conter mais vapor d’água e, como este é um gás de efeito estufa, amplifica o efeito do CO₂). Aceitam-se as evidências, passa-se à próxima questão. É o que se espera do método científico.

Havia obviamente lacunas imensas no trabalho de Arrhenius que viriam a ser preenchidas depois. Não havia, por exemplo, pistas sobre o que poderia disparar glaciações ou deglaciações e fazer o CO₂ variar, até os trabalhos de Milankovitch (que propôs que variações cíclicas nos parâmetros da órbita terrestre de excentricidade, obliquidade e precessão serviriam de marcapasso climático na escala de dezenas a centenas de milhares de anos). Importante dizer que Milankovitch também enfrentou resistência na aceitação de suas teses, até porque o impacto no balanço de energia da Terra por conta desses ciclos é muito pequena para explicar variações tão grandes no clima como as que ocorrem entre glaciações e desglaciações. Hoje sabemos: Milankovitch e Arrhenius tinham, ambos, parte da verdade em mãos. O primeiro descobriu o gatilho. O segundo, o mecanismo amplificador.

Epiciclos Negacionistas

Os epiciclos de Ptolomeu. Apegados a ideias tão ultrapassadas quanto falsas, os negacionistas estariam, na verdade, do lado da Inquisição, nunca do lado de Galileo.

Enquanto todo esse debate acontecia, desde 1880, quando foi estruturada uma rede de observações de superfície em escala mundial, dados estavam sendo coletados. E em 1938, Guy Callendar, novamente com um enorme esforço braçal (não havia planilhas de Excel naquele tempo…), encontrou as primeiras evidências nesses dados de que o planeta estava aquecendo, como já mostramos em nosso blog. Ele estimou que, naquele momento, parte do aquecimento observado era natural, mas atribuiu corretamente a outra parcela ao efeito antrópico. As previsões de Arrhenius, de mais de 30 anos antes, já estavam se confirmando. Importante lembrar, aliás, Callendar subestimava o ritmo das mudanças nos anos seguintes (não previu o crescimento exponencial do uso de combustíveis fósseis, que acelerou em muito as emissões) e tinha ilusões de que, pelo menos em parte, elas pudessem ser benignas ou mesmo benéficas.

Este, aliás, é outro “debate” já totalmente superado, pois sabemos que em áreas como a agricultura a tendência geral é que os problemas associados ao aumento da temperatura e da evapotranspiração potencial, bem como os desequilíbrios associados ao ciclo hidrológico superam em muito quaisquer possíveis benefícios que o aumento da concentração de CO₂ atmosférico possa ter sobre a fotossíntese, algo que abordamos neste vídeo. Fica a dica: se vocês prestarem atenção, verão que os “argumentos” negacionistas ou são mentiras deslavadas ou debates há muito superados.

Isso demonstra que o negacionismo climático na verdade é pura anticiência. A ciência avança. Não fica patinando, girando em falso em velhos debates, ignorando o corpo de evidências teóricas e empíricas. Na lógica dos negacionistas climáticos, ainda estaríamos discutindo o “éter” ao invés de abraçar a Relatividade de Einstein, ou estaríamos defendendo a geração espontânea, ou marcando passo nos epiciclos, um sistema tão elegante quanto errado, ao qual se apegava justamente a Igreja, aquela mesma, da Inquisição, para manter a “criação divina” no “centro do universo”.

Negacionismo é pseudociência criada “em laboratório”

“A não ser que a mudança climática saia da agenda, o que significa derrotar o protocolo de Kyoto e qualquer outra iniciativa futura, não haverá momento no qual possamos declarar vitória para nossos esforços”. É com esse tipo de
escrotidão que lidamos.

De Fourier até o IPCC, muito avançamos: observações diversas, satélites, supercomputadores com modelos, testemunhos paleoclimáticos. São dois séculos de conhecimento científico acumulado. Enquanto os negacionistas rodam em epiciclos, hoje sabemos que o sistema climático terrestre depende de maneira fundamental de um balanço de energia e uma condição próxima do equilíbrio requer que a quantidade de energia saindo do sistema, na forma de calor, ou mais especificamente de radiação infravermelho para o espaço, seja equivalente à quantidade de energia que entra, vinda do Sol. Daí, qualquer processo físico que interfira significativamente nesse balanço ocasionará uma mudança no clima e ao se analisar todos os possíveis fatores, descartamos os fatores naturais (mudanças de atividade solar, vulcanismo, mudanças cíclicas nos parâmetros orbitais, variabilidade interna de longo prazo). Ao mesmo tempo, verificamos que a mudança na concentração de gases de efeito estufa (principalmente CO₂, mas também metano, óxido nitroso e halocarbonetos) que se iniciou com o período industrial e se intensificou muito após a segunda metade do século 20, é capaz de produzir um desequilíbrio energético estimado em 2,29 Watts por metro quadrado (o que multiplicado pela área do planeta nos dá uma energia maior que a explosão de 18 bombas de Hiroshima por segundo).

A causa fundamental, portanto, do aquecimento observado no clima terrestre, sem margem para dúvidas, é a emissão antrópica desses gases. Destaca-se a queima de combustíveis fósseis, agravada por desmatamento, emissões de agropecuária etc. As consequências, boa parte delas já perceptível e com a devida aferição estatística, inclui uma maior frequência de eventos extremos (ondas de calor, tempestades severas, incêndios florestais etc.), perda de massa das geleiras e mantos de gelo, elevação do nível do mar, comprometimento de ecossistemas terrestres e marinhos (vide o branqueamento de corais), extinção de espécies.

Daí, é preciso deixar uma coisa bastante explícita: cientificamente, a questão já foi superada. É como a Teoria da Evolução ou a Teoria da Gravitação Universal. O negacionismo climático não tem legitimidade científica, pois sequer propõe algo alternativo, com um corpo de hipóteses minimamente coerentes. Trata-se de propaganda anticiência, de desinformação, pura e simples.

Mais do que isso. Mesmo nesse terreno não há “geração espontânea”. As larvas negacionistas não brotaram simplesmente da carne podre. Houve quem colocasse os ovos. O negacionismo se trata de um “produto de laboratório” de corporações, como a Exxon, e think tanks dos EUA, que há mais de 20 anos mimetizaram a estratégia da indústria do tabaco que sabotou por um longo tempo as medidas de restrição ao fumo. O padrão é exatamente o mesmo: para defenderem seus lucros, atacam o consenso científico, recrutando algumas figuras do meio acadêmico e da mídia, confundem e desmobilizam a opinião pública, agindo como verdadeiros mercadores da dúvida. Existe farta documentação mostrando não apenas os vínculos entre o negacionismo e esses interesses econômicos escusos, mas inclusive que se tratou de algo pensado, elaborado, com tática e orçamento. Já abordamos este tema anteriormente, com links para farto material que evidencia o tamanho da fraude e da calhordice do negacionismo.

Daí, como mentirosos que são, detratores da ciência, os negacionistas nada têm a ver com Galileo. Eles, na verdade, são a Inquisição, tanto no campo das ideias, ao insistirem em mitos e se recusarem a aceitar as evidências que os desmentem, quanto no campo da aliança com o poder constituído, ao serem turbinados pela indústria petroquímica e outros setores econômicos (no Brasil, há larga evidência de aproximação com o agronegócio), além dos seus vínculos com a extrema-direita em nível global. Então, que exijamos respeito à ciência e à figura de Galileo Galilei e não aceitemos que vilões canalhas e desonestos posem de vítima.

Fonte – Blog o que você faria se soubesse o que eu sei? de 08 de novembro de 2017

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