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O colapso (in)evitável e o Antropoceno

O sistema produtivo capitalista experimentou nas últimas décadas enormes transformações, que colocaram o planeta sob intensa pressão no que diz respeito às fontes de matérias-primas e de energia. A China virou um enorme galpão de fábrica, a ser alimentado por carvão e gás para suas termelétricas, minério de ferro, cobre e metais raros para eletro-eletrônicos, plástico e químicos diversos. Por todo o globo, a frota automobilística e também a frota aérea não pararam de crescer, demandando materiais metálicos e não-metálicos para sua fabricação e, sobretudo, derivados de petróleo para movimentá-las. Interconectado globalmente, o sistema capitalista proporcionou um fluxo extremamente intensivo não apenas de capital especulativo, mas desses materiais e dos produtos a partir deles fabricados. As redes longas desse sistema econômico ligaram, via extração, produção e consumo, praticamente todos os indivíduos em praticamente todos os cantos do planeta. Por terra, pelo ar e pelos mares, milhões de toneladas de material de bauxita a celulares viajam todo ano, numa espiral crescente.

O resultado dessa expansão não apenas em volume do que é produzido e consumido, mas no aumento da velocidade do transporte e do descarte estabeleceu um conflito que faz a luta de classes parecer um diálogo amigável: a contradição insolúvel entre um sistema intrinsecamente expansionista e um mundo limitado. Os chamados limites planetários estão sendo um a um ultrapassados. As curvas de diversos parâmetros assumiram a forma exponencial, configurando o que se convencionou chamar de “a grande aceleração“, particularmente nítida a partir da segunda metade do século passado e início deste.

Da população urbana ao consumo de fertilizantes, da produção de papel às concentrações de gases de efeito estufa, do uso de água doce à degradação ambiental, tudo cresceu exponencialmente em especial a partir da segunda metade do século XX.

A contaminação química do ecossistema terrestre é global. São exemplos o plástico nos oceanos; os metais pesados no solo, rios e penetrando por toda a biota via cadeia alimentar; o ozônio (desejável em camadas elevadas da atmosfera mas extremamente prejudicial próximo à superfície) produzido por reações fotoquímicas que se originam em motores e caldeiras de combustão e que gera smog (como o que literalmente obstrui a visão em Beijing e outras grandes cidades da China e outros países)… A mudança na composição química da atmosfera se dá de forma múltipla: a quantidade de aerossóis (particulado líquido e sólido em suspensão) se multiplicou brutalmente com os processos industriais, combustão de combustíveis fósseis e queimadas; gases que não existem naturalmente agora fazem parte do ar que respiramos, particularmente os halocarbonetos (que incluem os CFCs responsáveis pela degradação da camada de ozônio estratosférico e que, em seu conjunto, são gases de efeito estufa) e as concentrações de gases como óxido nitroso (resultante da decomposição de fertilizantes e outros agroquímicos nitrogenados), metano (emitido em associação com atividades agropecuárias) e, claro, dióxido de carbono, ou CO2. Além da influência brutal sobre o clima (os três últimos citados são gases de efeito estufa), o excesso de CO2 na atmosfera leva a que este se dissolva nos oceanos, acidificando-os (o pH já aumentou 0,1 desde o período pré-industrial, o que implica em um aumento no nível de acidez em quase 30%). À contaminação química, soma-se a contaminação radioativa, associada aos sucessivos testes nucleares e, claro, aos acidentes e vazamentos em reatores, como os casos trágicos de Tchernobyl e Fukushima. Ao se ter a sociedade humana organizada conforme a dinâmica do capital pressionando o ecossistema global como força de escala geológica, interferindo decisivamente (e em vários casos de forma dominante) nos ciclos biogeoquímicos e alterando a própria termodinâmica planetária, alguns cientistas propuseram que se caracterize o presente como uma nova época geológica, distinta do Holoceno (período de cerca de 10 mil anos de estabilidade climática ao longo do qual a civilização humana floresceu): o Antropoceno, conforme a designação proposta por Crutzen e Stoermer (2000), num artigo que faz parte desta publicação.

Já ficou evidenciado um forte acordo, num grupo de trabalho de especialistas, que o Antropoceno deve ser já caracterizado como uma nova época geológica, embora ainda não tenha sido delimitado que referência deve ser adotada, nem do ponto de vista temporal nem do ponto de vista físico-biogeoquímico. De qualquer modo, a adoção do termo é cada vez mais consensual. Mais recentemente, Gaffney e Steffen (2017) fizeram uma atualização das atuais condições do Antropoceno e os números são cada vez mais assombrosos, especialmente quando comparamos as tendências exponenciais e disruptivas do Antropoceno com a marcante estabilidade do Holoceno.

Dado que os combustíveis fósseis (carvão, petróleo e gás) foram e continuam sendo as principais fontes de energia, a concentração atmosférica de CO2, principal produto da combustão, disparou no Antropoceno. No período de 1970 a 2015, essa concentração cresceu 75 partes por milhão, o que nos dá uma taxa de variação de 166 ppm/século. Esse valor é quase 1000 vezes aquele verificado entre 11.000 e 7.000 anos atrás (início a meados do Holoceno), quando a concentração de CO2 caiu a uma taxa de aproximadamente 0,17 ppm por século. É 550 vezes maior do que as mudanças entre o Holoceno médio e o período pré-industrial (1750), intervalo durante o qual essa concentração caiu a uma taxa em torno de 0,30 ppm/século. É 100 vezes maior do que a variação observada na concentração desse gás na última grande mudança climática global natural (término da última era glacial). É 10 vezes maior do que o maior evento conhecido de liberação desse gás na Era Cenozóica, o “Máximo Térmico do Paleoceno-Eoceno”.

Mas como discutimos várias vezes em nosso blog, não reside só no CO2 o problema… Grandes quantidades de metano são produzidas pela fermentação entérica (no aparelho digestivo de animais ruminantes) e pelas chamadas “emissões fugitivas”, vazamentos que inevitavelmente acompanham a prospecção, extração e processamento de combustíveis fósseis, especialmente com técnicas mais agressivas como o “fracking”. Esta substância é um poderoso gás de efeito estufa, com potencial de aquecimento global 34 vezes maior do que o do CO2 na escala de 100 anos. A estimativa de variação na concentração de metano (CH4) ao longo do Holoceno (11 mil anos atrás até o período pré-industrial) é de cerca de 2 partes por bilhão (ppb) por século. De 1750 a 2012, a quantidade de metano na atmosfera saiu de 722 ppb para 1810 ppb (150% de aumento!). De 1984 a 2015, a taxa de incremento média na concentração atmosférica desse gás foi de 57,5 ppb/década (ou 575 ppb/século), valor mais de 285 vezes maior do que a estimativa média para o Holoceno.

Sabe-se desde o século XIX que uma alteração na concentração desses gases teria o potencial de mudar o balanço energético terrestre. E as evidências agora estão aí. Entre 1970 e 2015, a temperatura média global cresceu a uma taxa média de 0,17°C por década (ou 1,7°C por século). Em contraste, durante o Holoceno, a temperatura mostrou-se relativamente estável, com uma redução média de 0,01°C/século. Portanto, as variações de temperatura, hoje, são 170 vezes mais rápidas do que aquelas verificadas durante o Holoceno.

A ciclagem de nutrientes no Sistema Terra também está profundamente alterada. Os ciclos do Nitrogênio e do Fósforo estão entre ciclos biogeoquímicos mais importantes. 180 Tg (teragramas ou milhões de toneladas) de nitrogênio são processados anualmente por processos agrícolas, industriais e rejeitos urbanos, o que representa mais do triplo do nitrogênio processado globalmente pelos microorganismos fixadores terrestres (toda a fixação de nitrogênio nos continentes somada resulta em 58 Tg/ano). Somando-se os 30 Tg associados à combustão, chegamos a 210 Tg/ano, mais do que a soma da fixação nos continentes (58 Tg/ano), nos oceanos (140 Tg/ano) e na atmosfera, por relâmpagos (5 Tg/ano). O resultado é que o ciclo do nitrogênio encontra-se totalmente desbalanceado. Há estimativas de que hoje em dia 72% do Nitrogênio que chega aos corpos d’água vêm da atividade agropecuária, incluindo o uso de fertilizantes sintéticos. No caso do fósforo, os valores de referência do Holoceno eram de 10-15 Tg/ano, mas este valor agora foi elevado para 28-33 Tg/ano, associado com mineração, resíduos e, novamente, com fertilizantes. Em outras palavras, é possível que os fluxos de fósforo tenham sido simplesmente triplicados. Os impactos envolvem eutrofização, mudanças de pH, alteração do teor de oxigênio dissolvido e mudanças na toxicidade, produzindo desequilíbrios nos ecossistemas e não raro inviabilizando o aproveitamento desses corpos d’água para uso humano.

Os oceanos também estão sob uma pressão violentíssima das ações humanas. Em virtude do aumento de concentração de CO2 atmosférico e das mudanças climáticas associadas a ele, os oceanos têm sofrido transformações violentas durante o Antropoceno. Em 2016, acompanhando o recorde global de temperaturas, a superfície dos oceanos ficou 0,69°C mais quente do que a média de 1951-1980, cerca de 1°C acima das temperaturas médias observadas no início do século XX. A presença de enormes quantidades de CO2 na atmosfera faz com que parte significativa desse gás se dissolva nos oceanos, diminuindo seu pH, ou seja, aumentando sua acidez. As estimativas são de que o pH oceânico já diminuiu em 0,1 o que implica numa acidez 26% maior. Segundo Gaffney and Stefan (2017), tais mudanças já são de 3 a 7 vezes maiores e 70 vezes mais rápidas do que aquelas verificadas durante as deglaciações (como a saída da última era glacial há 11.700 anos. Os autores também estimam que um ritmo de acidificação tão acelerado seja inédito em 250 milhões de anos, quando os “trapps siberianos” (supervulcões) lançaram enormes quantidades de gases na atmosfera, extinguindo 95% das espécies marinhas naquela que foi a maior extinção da história geológica terrestre (Extinção do Permiano-Triássico).

Mas não fica nisso. Recente estudo publicado na Nature por Schmidtko et al. (2017) mostra que o teor de oxigênio dissolvido nos oceanos caiu 2,1% em 50 anos. A razão disso? O aquecimento global, por dois fatores: primeiro, quanto maior a temperatura oceânica, menor a solubilidade (não apenas do oxigênio, mas dos gases em geral). Segundo, como o aquecimento se dá principalmente a partir da superfície, a tendência é aumentar a chamada estratificação, isto é, mantém-se água quente em cima e água fria embaixo, o que limita a mistura vertical e portanto a ventilação, que leva água com oxigênio para camadas mais profundas. Mais um efeito temido das mudanças climáticas que se confirma. Por fim, não custa lembrar que tais mudanças profundas são ainda agravadas por uma série de outras agressões diretas, incluindo vazamentos de petróleo, a quantidade enorme de plástico, o excesso de nitrogênio e fósforo nos rejeitos de agropecuária e esgoto, a pesca predatória e o fluxo de espécies invasoras por meio da água de lastro dos navios.

Quando nos referimos à humanidade, no atual estágio de desenvolvimento do capitalismo, como uma força geológica, isso inclui também o sentido mais literal do termo, o de movimentação de material do solo e subsolo. Do ponto de vista científico, não se sabe se a fé remove montanhas, mas o Antropoceno, com certeza. O fluxo de sedimentos decorrente da atividade mineradora atingiu impressionantes 57.000 Tg/ano (teragramas por ano), ou 57 bilhões de toneladas. É cerca do triplo da soma daquilo que é carregado pelos rios de todo o planeta. Importante dizer que esses próprios fluxos naturais, dos rios, também estão sendo alterados, com processos erosivos tendo contribuído para aumentá-los enquanto os barramentos têm contribuído para reduzi-los.

Na Natureza, tudo que cresce exponencialmente produz instabilidade, seguida de colapso. É simples assim. Na Física, quando resolvemos as equações de um problema e uma das soluções é de crescimento exponencial, nós a descartamos, por ser implausível. Violar a conservação da massa, a conservação da energia e a 2ª Lei da Termodinâmica parece ser o sonho da economia capitalista, mas só podem conduzir ao pesadelo de uma sociedade insustentável.

Um dos desfechos possíveis na modelagem de Motesharrei et al. (2014): colapso completo e irreversível por superexploração do ambiente e desigualdade econômica.

Nesse sentido, o colapso do Antropoceno é inevitável. É até (obviamente de forma simplificada) tratável matematicamente, como no modelo de “colapso N irreversível” conforme Motesharrei et al. (2014): a natureza cai abaixo da “capacidade de carga” e isso leva à estagnação e queda da produção de riqueza, ao colapso da “plebe” e só depois ao colapso da “elite”. Como mostra o gráfico, esta termina por ruir também, mas pelo visto, a julgar pela sua (im)postura em geral, prefere desfrutar dos privilégios de curto prazo. O colapso do capital é inevitável (a não ser no cenário altamente improvável da viabilização de tecnologias de migração, colonização e exploração espacial em grande escala em uma escala de poucas décadas).

Mas há algum colapso evitável? Eu diria que o colapso civilizatório geral, o colapso da espécie, este ainda não está dado. Na verdade, é essa a disputa ainda colocada. Para os bilionários, parece pior desaparecer logo, destronados por um processo de transformação social que desmonte essa sociedade expansionista e desigual, do que desaparecer depois, no colapso ecológico. Mas a saída, como nos filmes de ação em que a saída se estreita cada vez mais implica em mais do que um combate de longo prazo, pois também é para agora. As emissões acumuladas a cada ano diminuem cada vez mais a margem de manobra, tornando cada vez mais difícil manter as chances de evitar que se ultrapasse um aquecimento (já catastrófico) de 2°C (o limite de 1,5°C está, a essa altura, virtualmente inviabilizado).

Se as emissões continuarem a crescer até o começo da próxima década no ritmo atual, torna-se praticamente impossível, sem remoção de carbono em grande escala, deter o aquecimento global a menos de 2°C acima do período pré-industrial.

Especificamente no que tange à questão climática (e, por tabela, da acidificação oceânica), a depender do que for feito na próxima década ou duas, o aquecimento global poderá ficar entre uma herança negativa, deletéria e profundamente incômoda para até dezenas de gerações seguintes ou pode vir a ser uma catástrofe completa, capaz mesmo de inviabilizar boa parte do globo como habitat para o gênero humano. É um contexto em que as escolhas que mais salvaguardam o futuro (inclusive a velhice das gerações atuais) são precisamente aquelas mais contrárias à lógica do mercado e da acumulação de capital (e são absolutamente urgentes). São as que batem de frente com incentivo ao consumismo, obsolescência programada, propaganda, uso extensivo de embalagens, criação de falsas necessidades em torno de itens fúteis e supérfluos, transporte individual, expansão das fronteiras extrativista e agrícola, uso perdulário de matéria-prima e energia, matriz energética concentrada e baseada principalmente em combustíveis fósseis, excesso de produção, uso massivo de fertilizantes e outros agroquímicos, jornadas de trabalho muito mais prolongadas do que o necessário, etc. As escolhas que salvaguardam o futuro são as no sentido de uma sociedade igualitária, democrática e que utiliza racional e contidamente a matéria e a energia que o restante da natureza lhe fornece. São aquelas de um “colapso do bem”, de inflexão na velocidade dos processos e (tentativa de) reversão das alterações ambientais deletérias associadas ao Antropoceno.

O problema maior, de fato, é a corrida contra o tempo. Se as emissões continuarem a crescer até o começo da próxima década no ritmo atual, torna-se praticamente impossível, sem remoção de carbono em grande escala, deter o aquecimento global a menos de 2°C acima do período pré-industrial. Ou seja, se precisamos de um “colapso do bem” para deter as piores consequências do caos ecológico introduzido pelo Antropoceno, a “palavra-de-ordem” bem que pode ser “Colapso Já!”.

Fonte – Blog o que você faria se soubesse o que eu sei? de 02 de março de 2017

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