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O fim da era do desperdício

Em duas décadas, diz o economista Gesner Oliveira, em boa parte do planeta faltará água. Para evitar que isso ocorra, há apenas dois caminhos: diminuir o desperdício e aumentar a reutilização

Grandes regiões metropolitanas do mundo podem enfrentar problemas graves de falta de água. O Brasil não está livre desse risco. Para o economista Gesner Oliveira, Ph.D. pela Universidade da Califórnia em Berkeley e presidente da Sabesp entre 2007 e 2010, há duas medidas urgentes a ser tomadas para evitar que a situação atinja o nível de calamidade. A primeira é combater o desperdício. No Brasil, 37% da água tratada é desperdiçada e nem sequer chega às torneiras. A segunda é ampliar a reutilização da água, prática comum nos países que são modelo em abastecimento.

É inevitável que o mundo sofra com a escassez de água no futuro?

Se medidas urgentes não forem tomadas, é quase certo que tenhamos um problema de saneamento e de abastecimento muito grande já daqui a duas décadas. Não que a água do planeta vá acabar, claro, mas haverá problemas sérios de falta de mananciais utilizáveis nas regiões urbanas. O planeta vive um ritmo de urbanização intenso, em especial na Ásia e na África. Para lidar com isso, é preciso reduzir a perda de água tratada e reutilizá-la cada vez mais. Temos de romper com aquele paradigma da Antiguidade, quando os povos poluíam rios e açudes e iam buscar água cada vez mais longe. Essa prática, que deu origem a lindos aquedutos que ficaram para a história, não é mais viável em um planeta habitado por mais de 7 bilhões de pessoas.

O crescimento da população é a principal ameaça ao abastecimento?

Não. O que ocorre é que, de um lado, vemos uma urbanização crescente, com o surgimento de macrometrópoles formadas sem o devido planejamento. De outro, observamos o aumento da população da classe média nas economias emergentes. Isso significa que quem não consumia passou a consumir, o que aumenta a pressão sobre o sistema energético e de abastecimento. Existe ainda a questão ambiental. Desmatamentos às margens dos rios contribuem para que estes sequem. E há áreas onde os lençóis freáticos foram tão sobrecarregados que elas agora correm o risco de se tornar desérticas. Na Cidade do México, onde a água subterrânea é muito usada, isso já é uma realidade.

Em São Paulo também se vive um temor de racionamento. O governo falhou em seu planejamento? Subestimou a estiagem?

O fenômeno da estiagem tem sido tão intenso que dificilmente estaria no radar de qualquer governo ou empresa de saneamento. Mas, olhando as dificuldades climáticas que vêm ocorrendo na Califórnia e na África, por exemplo, é fundamental que comecemos a pensar numa mudança para valer – e não me refiro aqui a um plano de dois ou três anos. Falo de mudanças profundas, para os próximos vinte ou trinta anos.

Que tipo de mudanças?

O Brasil desperdiça muita água tratada. Nossa perda média é de 37%. Se o país fosse uma padaria, significaria que, de cada dez pãezinhos assados, estaria jogando 3,7 fora. É muita coisa, sobretudo para uma mercadoria tão vital. Há estados com taxas piores. No Amazonas, as perdas chegam a 70%. No Recife, em Manaus e nos municípios paulistas de Cajamar, Caieiras e Francisco Morato, o desperdício é superior a 40%. A perda média da Sabesp é de 26%, bem menor que a média nacional. Para 2019, a meta é reduzir a taxa para 17%. Ainda assim, ficaríamos acima do padrão internacional considerado bom, entre 10% e 15%.

O que causa tanto desperdício?

Há dois motivos principais. Um é físico. Quando ocorre vazamento em uma adutora, ou mesmo na rua, a água até é reabsorvida pelo solo, mas a um custo muito alto, uma vez que já havia sido tratada, transportada e foi perdida. Jogam-se fora os produtos químicos, a mão de obra e a energia que ela consumiu. Vai tudo literalmente pelo ralo. O outro motivo é comercial. O chamado “gato” não é uma prática destinada a furtar só energia elétrica. Existe o “gato” hidráulico também. Vemos com muita frequência uma tubulação batizada de “macarrão”.

Em geral, é um sistema muito malfeito e permeável, portanto contaminável, e que às vezes cruza o esgoto. Essa estrutura permite roubar água das companhias fornecedoras. Em alguns casos, esse tipo de furto chega a representar metade das perdas das empresas.

É possível chegar ao desperdício zero?

Não é vantajoso, é antieconômico. Zerar o desperdício tem um custo que não justifica a economia feita. No Japão, dado o custo e a escassez da água, vale a pena investir em perda zero – em Tóquio, menos de 5% da água tratada vai embora sem ser usada. Quando eu estava na presidência da Sabesp, ficava constrangido ao conversar com técnicos japoneses sobre os números brasileiros. Mas o Brasil tem uma enorme margem para melhorias, devido ao tamanho da sua ineficiência. É natural que estejamos discutindo o uso da reserva técnica do Sistema Cantareira, em São Paulo, e se vai chover ou não. Tudo isso é importante, são questões urgentes. O grande mérito desse debate, porém, é que ele vai contribuir para discutir estratégias de longo prazo.

E quais são as medidas fundamentais para garantir que não faltará água no futuro?

São duas. A primeira é a redução das perdas, por meio do aumento da eficiência. Ao abrirem a torneira, as pessoas precisam saber que estão usando um bem valioso. Há muito descaso com a água, talvez porque, das utilidades públicas, ela seja a mais barata. A segunda medida fundamental é ampliar a reciclagem da água que é consumida.

Como é feita essa reciclagem?

Hoje, existe no mundo um nível de tratamento tal que, ao fim dele, é possível beber a água que saiu da estação de tratamento de esgoto, ou seja, que passou pelo vaso sanitário. Pode parecer repugnante para muita gente, mas é como funciona em diversos países. E o método não tem relação com crises hídricas, tra­ta-se de uma medida usual em Israel, por exemplo. Fui lá conhecer essa experiência e posso dizer que não é uma tecnologia de outro planeta. No caso dos israelenses, compensa. Eles não têm muitas opções de captação e estão no meio do deserto. Mas pense no Brasil. Muito da água que bebemos vem de mananciais relativamente poluídos e que passam por tratamento. Algumas captações, como as dos rios Jundiaí ou Juqueri, e mesmo as das represas Billings e Guarapiranga, trazem uma água bruta, que faria passar mal quem a tomasse. Mas, depois de tratada, fica perfeita.

Qual a qualidade da água que chega pela torneira no Brasil?

Posso dizer que, em São Paulo, se a sua caixa-dágua for bem cuidada, não há nenhum risco ao tomar água da torneira. Pode não ser muito agradável porque ela talvez não tenha a mesma limpidez da água engarrafada, que cria no consumidor a ideia de que ele está tomando algo mais puro. Pode haver diferença de coloração e até de cheiro, mas, tecnicamente, trata-se de uma água boa. Embora seja levada muito em conta, a aparência não é importante. Em muitas localidades dos Estados Unidos, por exemplo, a água atende a todas as exigências de saúde, mas não tem coloração agradável.

Se a água da torneira pode ser bebida, o fato de a usarmos nos banheiros, por exemplo, não é também um desperdício?

Sim. A água adequada ao consumo humano é a mesma que usamos no banheiro ou para lavar a rua depois de uma feira. Mas para essas finalidades, digamos, menos nobres, a Sabesp mantém caminhões de água de reúso, que é água reciclada. Para lavar a rua, por exemplo, ela não precisa ter as características químicas exigidas para o consumo humano. O Metrô tem um contrato para a lavagem dos vagões que também estabelece o emprego do mesmo tipo de água. No tratamento-padrão, a água passa por desinfecção, para que microrganismos sejam retirados; coagulação, para que impurezas sejam removidas e deixadas em suspensão; e depois pelas fases de floculação, decantação, filtração e correção do pH. No Brasil, ainda se adiciona flúor, muito eficaz para controlar cáries. Claro que não é necessário acrescentar flúor à água usada para lavar as ruas. Essas medidas de reúso são fundamentais, mas ainda estão em fase inicial. Temos muito que avançar.

Seria possível fazer uma divisão do sistema de abastecimento, com uma rede de água nobre e outra menos nobre?

Sim. Isso reduziria os gastos com produtos químicos, energia e mão de obra. Por outro lado, seria preciso investir na construção dessa outra rede. O Brasil não chegou a esse ponto porque a produção de água de reúso ainda é de menos de 1%. Seria razoável que na próxima década ao menos um quarto da água consumida no país fosse de reúso.

O senhor falou que a água é a mais barata das utilidades públicas. Aumentar a tarifa é a solução?

A solução passa menos por aumentar tarifas e mais por estabelecer regras de uso que obedeçam a critérios técnicos, e não a conveniências políticas. É preciso que o assunto seja regulamentado por um órgão independente e com excelência técnica para estimular o investimento e inibir o populismo. Vale o tripé: boa regulação, bom planejamento e boa gestão. Sem esses pilares, é difícil imaginar cidades saudáveis e recursos hídricos bem aproveitados. Para atrapalhar um pouco, há um raciocínio político muito perverso que diz que esse tipo de investimento não tem visibilidade e, portanto, os dividendos políticos que ele gera não são tão grandes quanto os que rendem a construção de um viaduto, por exemplo. O grande segredo é mudar esse raciocínio e criar dividendos políticos investindo no saneamento. Ao mesmo tempo, é preciso estabelecer penalidades para políticos que deixarem a questão de lado.

A escassez de água traz também o medo do racionamento de energia, já que nossa matriz é hidrelétrica. Como evitar que isso aconteça?

Algumas medidas sinalizam possíveis caminhos a seguir. Um deles é reduzir o gasto energético do próprio sistema de abastecimento, já que o bombeamento é uma das coisas que mais consomem energia. Outra possibilidade é aproveitar a engenharia de captação de água para gerar energia. Os diferentes níveis entre as represas permitem a criação de pequenas centrais hidrelétricas. Há uma no Sistema Cantareira. Ela gera 7 megawatts, o que é pouco, mas indica um caminho. No tratamento de esgoto há geração de gases úteis na produção energética, como o metano. Além disso, o lodo originado nesse processo pode ser usado nas termelétricas e também como matéria-prima na construção ci­vil, por exemplo, na fabricação de tijolos.

É possível produzir água em laboratório?

Até onde conheço, não é um grande investimento. Os cientistas têm se voltado mais para as pesquisas de dessalinização, cujo custo vem diminuindo. Em alguns países, como a Espanha, esse tipo de abastecimento já é um importante plano B. Nas épocas do ano em que chove menos, utiliza-se mais essa água dessalinizada.

Existe algum país que sirva de modelo para o Brasil?

As peculiaridades são tantas que é difícil dizer, mas acho que esse país seria o Canadá, por ter a mesma dimensão continental e uma hidroeletricidade importante. Israel, Japão, Espanha, Austrália e Singapura também poderiam servir de inspiração – têm experiências muito positivas de saneamento e reúso.

Há um limite de vezes em que a mesma água pode ser reaproveitada?

Não, veja que maravilha. A não ser que os mananciais estejam muito poluídos. Nesse ponto, começam os problemas. Eles se tornam inúteis e há um processo de desertificação. Ou então o solo perde a capacidade de absorção e ocorrem enchentes. Na China, já é um problema sério. O consumo explodiu e a preocupação ambiental não acompanhou a economia. Já a Coreia do Sul venceu a poluição e teve experiências bem interessantes ao desenterrar rios e córregos antes canalizados. Foi uma espécie de reurbanização, cujo símbolo é o Rio Han, que renasceu.

Fonte – Mariana Barros, Planeta Sustentável de 06 de agosto de 2014

Imagem – BRJ INC.

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