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O fim do inverno nos Campos Naturais do Paraná

Lobo-guará fotografado na área da APA da Escarpa Devoniana. Foto: Romulo Cícero da Silva.Lobo-guará fotografado na área da APA da Escarpa Devoniana. Foto: Romulo Cícero da Silva.

Nasci há três anos, num pequeno cânion, ao longo da Escarpa Devoniana, essa formação geológica que separa o primeiro e o segundo planalto do Paraná. Nos meus primeiros meses de vida, aquele local parecia um espaço ideal, suficiente para um privilegiado período de convivência com meus dois irmãos.

Recebíamos a atenção cuidadosa de nossa mãe, que se mantinha uma parte do tempo à distância, em busca de caça para nossa subsistência. Um desafio e tanto que, de alguma maneira, propiciou a condição de criação da nossa pequena família. Só muito tempo depois passei a descobrir que o espaço imediatamente seguinte ao local onde vivíamos era cercado de plantações que praticamente tomavam conta da paisagem.

Quando passamos a buscar nosso próprio alimento é que descobrimos o quão difícil é conseguir sobreviver num ambiente com alterações tão intensas. Os Campos Naturais, que nos dão as condições de acesso ao alimento, baseado em diversas espécies nativas de pequenos roedores e marsupiais, não existem mais. A não ser em pequenas bordas de afloramentos rochosos, onde aparentemente o ser humano ainda não conseguiu encontrar alguma forma de exploração possível.

A realidade de nosso dia a dia, na prática, envolve um complexo processo de esquiva, no qual a presença de caçadores deve ser constantemente parte de nossa atenção. Não basta encontrar alimento. Temos que evitar a presença humana de todas as maneiras, uma vez que ainda existe uma contínua ação de predação das espécies que ocorrem nas áreas nativas do Paraná, muito pouco protegidas, submetidas sistematicamente a ações hostis e contrárias à proteção da natureza.

“Os Campos Naturais e as Florestas com Araucária, que um dia cobriram todo o segundo planalto, se esgueiram em frações cada vez menores do território”.

Há dois anos não encontro mais minha mãe e meus irmãos. Seguiram destino próprio, buscando espaços possíveis para a constante luta para manter uma população mínima de nossa espécie na região. Mas já representamos uma raridade, frente à pequena densidade de indivíduos que ainda subsistem, a despeito das pressões existentes. Mesmo assim, o futuro é claramente incerto. Os Campos Naturais e as Florestas com Araucária, que um dia cobriram todo o segundo planalto, se esgueiram em frações cada vez menores do território.

É no inverno que a situação fica mais complicada para nós. A falta de chuvas, queimadas frequentes e a carência de alimento nos castigam duramente. Encontrar caça selvagem em condições assim tão adversas pode ser quase impossível, limitando drasticamente a sobrevivência de toda nossa população. Aos que conseguiram subsistir, o início da primavera e a perspectiva de chuvas pode trazer de volta uma possibilidade de melhores condições de vida.

Mas as limitações extremas que esse período nos impõe, inevitavelmente preconizam uma aproximação indesejável. É quando buscamos alimento a partir de alternativas não convencionais. E é quando nossa presença é constatada em locais alterados pela presença humana, até mesmo nas proximidades das cidades. São mais frequentes as visualizações de elementos de nossa espécie nessa época, erroneamente interpretadas como um fenômeno inusitado, que suscita a curiosidade das pessoas.

De fato, nos entregamos a esse tipo de violência, a ponto de nossa característica arredia ser deixada de lado, em função do desespero em obter algum tipo de alimento. Essa condição em nada reflete uma convivência equilibrada com essa outra espécie, responsável pela ocupação exacerbada dos espaços naturais. Aquela que nos tirou praticamente todas as áreas nativas que poderiam propiciar uma condição de manutenção de nossos pares. E de tantas outras espécies, características dessa região, nossa verdadeira casa, hoje desfigurada.

Nós, os lobos-guarás, ainda subsistimos. Somos já poucos indivíduos resistindo às condições de insalubridade violentamente impostas pelos humanos. Perto de uma eliminação definitiva, ficamos à espreita de menos perseguição e menos festejos equivocados, em nossas aparições em locais erráticos. Quem sabe a insolência de tantos anos, que nos pressiona ao limite, gere alguma dor de consciência da espécie humana, tão tristemente pobre de valores. Inconsequente e egoísta.

Clóvis Borges é Diretor executivo da Sociedade de Pesquisa em Vida Selvagem e Educação Ambiental (SPVS).

Fonte – O Eco de 24 de setembro de 2017

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