Por Ellen Nemitz · ECO - 18 de dezembro de 2024 - Câmara ressuscitou “jabutis” da…
O governo precisa criar juízo e adotar um projeto energético que funcione
Experiente no assunto, cientista da USP adverte: a única saída para a falta d’água e de energia é reduzir o consumo. Depois, cumprir planos de médio e longo prazo.
Pouquíssimas pessoas, em São Paulo e no País, têm o conhecimento e a prática do professor José Goldemberg para entender a dupla crise de água e energia que, desde o final do ano passado, vem assustando milhões de brasileiros, e para sugerir saídas concretas. E o veterano professor, mesmo sabendo das limitações gerais e da indisciplina da população, se mostra esperançoso. “Acho possível gerenciar o problema e evitar a catástrofe. Mas é preciso ter um plano competente e capacidade de levá-lo adiante.”
Estudioso do assunto há várias décadas, reitor da USP por 14 anos, titular do Meio Ambiente no Estado e no governo federal e hoje comandando o Instituto de Energia e Ambiente da universidade, Goldemberg alia a tudo isso um grande espírito prático. É o que descobre quem entra na área do IEE, câmpus do Butantã: do portão de entrada até o prédio onde ele trabalha, uma fileira de painéis solares capta a energia e garante o fornecimento de eletricidade quase total do instituto. “Pelo menos uns 90%”, diz ele.
“O grande nó a desatar é que há mais consumo do que produção”, resume ele nesta entrevista. E a saída para isso tem de ser organizada em três etapas. “A primeira, imediata, é consumir menos – tanto água quanto energia. A segunda, para a água, é apressar as ligações com outras fontes. Para a energia, estimular as alternativas – como a eólica, a solar e a de biomassa, que dão resultados no médio prazo. E a terceira, bem mais cara e mais demorada, é preparar e cumprir um plano para aumentar a oferta de energia, sem a qual o Brasil não vai a lugar nenhum”. A seguir, os principais pontos da conversa.
A falta d’água em São Paulo caminha para um momento dramático ou ainda há saídas para se evitar o pior?
Acho que a catástrofe vai ser evitada e que será possível gerenciar o problema, com alguma dificuldade. Mas é preciso ter uma capacidade bastante boa.
De que maneira? Qual a saída rápida para o problema?
A crise, tanto da água quanto da energia, pode ser resumida no seguinte: há mais consumo do que produção. Em São Paulo, gastamos mais água do que há nas represas. E no Sudeste, mais energia elétrica do que as usinas produzem. A curto prazo – digo em 2015 – a única coisa a fazer é racionalizar o uso da água para consumo humano e também da eletricidade. Quer um exemplo? Aqui em São Paulo se consomem 180 litros/dia por pessoa. Os números da OMS nos revelam que a média de grandes cidades de outros países é de 150 litros/dia. Ou seja, há espaço, sim, para uma redução.
E quanto à energia elétrica?
A situação é semelhante. Estamos consumindo energia no limite. Não existe folga e isso provoca coisas como se viu naquela segunda-feira fatídica em que caiu parte do sistema. Muito calor, todo mundo ligou o ar-condicionado, a rede caiu. E não há nisso nenhuma surpresa. Qualquer técnico do setor lhe dirá que, em um sistema interligado, é preciso manter uma reserva de 5%. Naquela tarde, a reserva era zero. Repito: no curto prazo, nada mais há a fazer além de conscientizar a população e reduzir o consumo. Quem tem duas geladeiras, use só uma. Chuveiro, o mínimo. Luzes apagadas. São pequenas medidas que dão resultado quando milhões de pessoas as adotam.
E no médio prazo?
São necessárias obras. No caso da água, fazer logo essas interligações que a Sabesp está providenciando. Pegar a água da Billings e jogar no Alto Tietê, por exemplo. Mas essas obras, mesmo as emergenciais, vão levar seis meses. E a mais importante, a do Rio Jaguari, só fica pronta daqui a um ano e meio.
E o plano no sistema elétrico?
Aqui, todas as obras são de longa duração. E há os atrasos. Dois anos de atraso em Jirau. Em Belo Monte nem se sabe direito qual o atraso e, mesmo quando ficar pronta, não tem reservatório. De tantas concessões, reduções, ela ficou uma represa no chamado fio d’água – quando diminuir o volume do rio, a produção diminui. Em suma, é preciso planejamento para construir mais hidrelétricas com reservatórios e dar um estímulo real às energias renováveis, coisa que o governo não fez.
Por que não fez?
Porque o sistema de leilões tinha uma componente ideológica, introduzida em 2004. E a própria presidente esteve, na época, envolvida com a criação desse modelo – não foi uma opinião casual de um técnico desinformado. É a ideia da modicidade tarifária, que parece atraente. O que ela diz? Que só vamos produzir as energias mais baratas. Ora, é como alguém ir à feira pensando “vou comprar um quilo de frutas”. Não faz sentido. A produção, e portanto o custo de cada uma, é diferente. É razoável que a uva seja mais cara que a banana…
Ou seja, a modicidade tarifária é uma solução equivocada.
Sim, é uma fórmula inventada pelo governo federal que passa a tábua rasa nisso. Resultado: nos leilões, as novas fontes de energia, que ajudariam a resolver o sistema – eólica, biomassas, energia solar… – não conseguiam competir, já que o custo do quilovate seria maior. Assim, a que situação chegamos? O sistema hidrelétrico não deu conta e o governo colocou usinas térmicas em funcionamento. Foi um ponto positivo, sem elas estaria muito pior. Acontece que o custo da energia das térmicas é cinco a dez vezes maior que a das hidrelétricas. Nessa hora não lembraram da tal modicidade tarifária.
O que explica esse destino inevitável do País, que há décadas vive afundado em dificuldades e atrasos na construção das usinas? Por que é tão difícil resolver esses conflitos entre o governo, as empresas e os movimentos ambientais?
Porque falta firmeza por parte das autoridades responsáveis pelo setor. Belo Monte é um ótimo exemplo. Veja só: a construção da usina ali afeta a população local. É verdade. São 30 ou 40 mil pessoas que seriam afetadas. Por isso, o reservatório foi reduzido a tal ponto que virou a fio d’água. Ficou no mesmo nível normal do rio. Uma usina capenga. Se ela tivesse um reservatório, beneficiaria mais de 5 milhões de pessoas. E o governo não tem pulso para enfrentar essa situação. É verdade que esses grupos são organizados politicamente. E os 5 milhões que seriam beneficiados não são. Mas é para isso, enfim, que existe governo, não? Outro exemplo: o trecho sul do Rodoanel. Ali houve vários problemas. Passa em áreas de nascentes, tem índios etc. E onde, enfim, está o bem comum? É evidente que o bem comum exige que se faça o Rodoanel. Custou mais caro, 25% mais, por desvios etc., mas valeu a pena. O problema foi enfrentado e a obra saiu, com diálogo, sem massacrar as populações. Ficou mais caro? Ficou. Mas ficaria muito mais não fazer.
Por que até agora o sr. não usou a palavra “racionamento”?
O racionamento afeta mais os pobres do que os ricos. E há interesse social em evitá-lo. Veja o caso da água: ainda não falta, não é dramático. Mas quem pode abre poço artesiano, aumenta caixa d’água, aluga carro-pipa. Os pobres não têm como fazer isso. Mas há formas de fazer o racionamento.
Essa solução de “5 dias por 2” foi entendida por muita gente como o clássico “bode na sala”. Ou seja, fala-se em uma solução dolorosa para, depois, adotar uma mais aceitável. Foi isso?
Foi isso. Há métodos mais suaves de racionar.
Quais, por exemplo?
Como já mencionei antes, não é bom fazer racionamento numa área onde passa metrô. Pois milhares de pessoas vão pagar por isso. Veja, em Minas Gerais, três grandes empresas consomem 15% da água. Tem de começar por aí. Não vai deixar a população de BH sem água por causa dessas três. Vai provocar desemprego? É uma escolha: criar um problema econômico ou deixar uma cidade inteira sem água. Mas antes do racionamento, valeria um esforço de racionalização.
Acha adequado o modo como o governo paulista tratou até aqui a questão da água?
Antes das eleições o governo federal não fez nada. Pelo contrário, o Ministério das Minas e Energia garantiu que o risco de racionamento seria zero. O governo de SP pelo menos deu um desconto para quem reduzisse o consumo. Mas creio que ele devia ter sido mais rigoroso, multar quem consumisse mais.
E as ações de longo prazo?
É fundamental fazer leilão para diferentes formas de energia. Com preços competitivos, para realmente atrair o setor privado a participar.
De que modo se aproveitariam essas energias alternativas?
A eólica só valeria de fato no Norte do País, e um pouco no Sul. A biomassa, sobretudo em SP, poderia dar um choque de gestão, despertar o espírito animal do empresário, como dizia o (ex-ministro Guido) Mantega. As usinas de álcool e açúcar têm bagaço de cana seis meses por ano, para gerar eletricidade e vapor. E há dois tipos de energia solar: a que gera calor para aquecer água, que vem sendo usada inclusive em algumas unidades do Minha Casa Minha Vida; e o coletor solar, que produz eletricidade.
Esse segundo sistema foi implantado aqui no IEE.
Sim, e ele supre praticamente toda a energia usada no Instituto. É uma tecnologia um pouco mais cara, a fotovoltaica. Por isso, para ser adotada de fato é preciso trabalhar com escala.
No quadro econômico atual, com déficit de 6,7% do PIB – ou seja, faltando recursos – e muitas grandes empresas amarradas nas denúncias da Lava Jato, o governo tem uma limitação estratégica enorme. Algum think tank por aí tem um plano para o País voltar a crescer em ritmo razoável?
Essas medidas de curto alcance que mencionei não precisam de dinheiro do governo. O que é preciso é mudar os leilões, fazê-los de uma forma que o setor privado entre. E mais: um morador de casa térrea pode instalar uma fonte de energia para si próprio por uns R$ 10 mil a R$ 15 mil. E deixaria de gastar a energia fornecida pelas empresas do setor. Acho que o governo poderia fazer um pequeno esforço com os bancos de financiamento, o próprio BNDES, por exemplo. Já as grandes obras são mais complicadas. O fato é: para produzir 1 kW precisa-se de US$ 2 mil. Mas o Brasil necessita de 5 milhões de kW por ano. Por isso defendo que se ataque o problema de maneira descentralizada, com pequenos projetos – eólica, biomassa etc. O governo precisa criar juízo e um grande projeto energético que funcione.
Quando começaram a contar, em público, as reservas das represas, elas já não estavam em 100%, nem em 70%. As quedas começaram de 30%. Todo mundo bobeou lá atrás? Dá para por a culpa nos ambientalistas?
No caso do governo federal, acho que a resposta é clara: populismo e proximidade das eleições. Em 2012, várias pessoas alertaram – eu, inclusive – as autoridades para o fato de que os reservatórios estavam diminuindo muito. O que fez o governo? Deu desconto de 20% na tarifa de energia elétrica e, ao mesmo tempo, reduziu o IPI da linha branca, encorajando a compra de eletrodomésticos. Que contradição, e que hora para se fazer isso! Façamos justiça, os técnicos do Ministério de Minas e Energia viram, claramente, essa situação. Aí foi mesmo um DNA populista. Em São Paulo, o sistema energético não está nas mãos do governo do Estado. Mas na água, poderia ter sido mais proativo.
O ONS tem capacidade e autonomia para cumprir suas tarefas adequadamente?
Ele é tecnicamente competente. Ao contrário de outras agências, que são aparelhadas politicamente. Mas o ONS só é responsável por gerir os problemas que existem.
Fonte – Sonia Racy, O Estado de São Paulo de 09 de fevereiro de 2015
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