POR LEONARDO MERÇON – Colaborou Suzana Camargo – em 29 outubro de 2020
Espécie comum na Amazônia, o pica-pau-de-coleira (Celeus torquatus) somente exibe suas cores na Reserva Biológica de Sooretama e em reservas particulares vizinhas. Foto: Leonardo Merçon.
As florestas que compunham a chamada Mata do Tabuleiro do Espírito Santo, ao norte do Rio Doce, já foram consideradas uma das regiões mais ricas em biodiversidade do planeta. Infelizmente, muito já foi perdido devido à ocupação humana, a poluição dos rios e o desmatamento desenfreado. Da exuberante vegetação que se estendia a perder de vista restam hoje apenas alguns fragmentos, dentre eles a Reserva Biológica de Sooretama.
Área de floresta no interior da Reserva Biológica de Sooretama. Foto: Leonardo Merçon.
O nome Sooretama vem da língua tupi e significa “casa dos animais da mata”. A reserva e o complexo florestal do qual ela faz parte são alguns dos últimos e mais importantes refúgios de Mata Atlântica do Espírito Santo, e o derradeiro reduto, no estado, de espécies icônicas como a onça-pintada, o tatu-canastra, a harpia e a anta. Esse é o motivo pelo qual o complexo consta na lista da Unesco como Patrimônio Natural da Humanidade e uma das áreas chaves para a preservação de aves pela organização Birdlife International.
A Reserva Biológica (Rebio), com 27.800 hectares de área, faz parte de um mosaico florestal que vai do extremo sul da Bahia ao norte do Espírito Santo, chamada de “Hiléia Baiana.” Nela podem-se encontrar, curiosamente, indícios da flora e fauna amazônicas em plena Mata Atlântica, apesar dos aproximadamente 1.500 km que as separam.
Vestígios da Amazônia presentes na Mata Atlântica
No Brasil, as florestas da Amazônia e da Mata Atlântica estão separadas pelos biomas Cerrado e Caatinga. Embora isoladas atualmente, inúmeras evidências indicam que essas duas regiões já estiveram ligadas no passado. Registros de paleopólen (pólen fóssil) e espeleotemas (estalactites e estalagmites) indicam a presença dessas áreas florestais há cerca de 900 a 20 mil anos onde hoje se encontra a Caatinga.
Segundo a pesquisa do professor do Instituto de Biologia da Universidade Federal da Bahia, Henrique Batalha Filho, existiram contatos históricos entre os dois biomas em dois momentos distintos. O primeiro, mais antigo, ocorreu durante o Mioceno (entre 5 e 24 milhões de anos atrás), através do Cerrado do Mato Grosso e da transição do Chaco no Paraguai e Bolívia, e foi possivelmente associada com eventos tectônicos.
O segundo seria mais recente, durante o Plioceno e Pleistoceno (entre 5 e 11,5 mil anos atrás) através da Caatinga e do Cerrado no Nordeste do Brasil. Nessa época, esse segundo contato estaria associado às mudanças climáticas do período, que promoveram expansões das florestas de galeria para dentro da chamada “diagonal de áreas abertas” da América do Sul (a faixa formada por Caatinga, Cerrado e Chaco). Esse avanço acabou permitindo trocas de espécies entre a Amazônia e a Mata Atlântica.
Quais são as espécies amazônicas encontradas em Sooretama
Muitas das espécies encontradas na Reserva Biológica de Sooretama mantiveram-se como as mesmas observadas na Amazônia. Uma delas é a tartaruga-de-patas-malhadas (Rhinoclemmys punctularia). Até então, acreditava-se que o gênero só era encontrado nas Américas Central e do Sul — e nesta, apenas na Amazônia. Mas ela pode ser vista também em Sooretama.
Outro exemplo é o surucuá-de-coleira (Trogon collaris), uma ave amazônica que habita esse pedacinho de Mata Atlântica no norte do Espírito Santo e no sul da Bahia. No mapa de ocorrência, ela existe em praticamente toda a Amazônia. Além dela, outros pássaros amazônicos podem ser vistos em Sooretama, como o flautim-marrom (Schiffornis turdina), o catatau (Campylorhynchus turdinus), o tururim (Crypturellus soui) e a maior ave de rapina do Brasil, a harpia ou gavião-real (Harpia harpyja).
Outras espécies, por sua vez, sofreram com a especiação — processo evolutivo pelo qual as espécies vivas se formam —, devido aos milhares ou milhões de anos que as separaram geograficamente. De acordo com Thiago Silva-Soares, pesquisador do Projeto Herpeto Capixaba, que estuda répteis e anfíbios da fauna brasileira, o processo da especiação pode ser uma transformação gradual de uma espécie em outra ou pela divisão de uma espécie em duas.
“Há uma barreira física entre elas – no caso, a diagonal seca [formada por Caatinga, Cerrado e Chaco], que impede que as populações se conectem. Em algum momento vão estar tão diferentes que não vão conseguir se intercruzar, seja por serem incompatíveis ou não mais se reconhecerem como mesma espécie”, explica.
Um possível exemplo de especiação é o mutum-do-sudeste (Craxblumenbachii). Existem diversas espécies de mutuns distribuídas pelo Brasil, quase todas nativas da Amazônia. Porém o mutum-do-sudeste, também conhecido na região como mutum-de-bico-vermelho, é endêmico da Mata Atlântica, ou seja, ele só ocorre por lá. Os poucos exemplares do animal têm a sua área de ocorrência restrita a pequenas matas protegidas do sul da Bahia e do norte do Espírito Santo. Sua maior população encontra-se no complexo formado pela Rebio de Sooretama, a Reserva Natural Vale e reservas particulares menores do entorno, como Fazenda Cupido e Refúgio. Estima-se que hoje cerca de 500 indivíduos na natureza.
A espécie, símbolo da importância da preservação do local, só não foi extinta devido a esses remanescentes em meio à tão degradada Mata Atlântica. Animais como esses são importantes tanto por seu valor biológico como para a economia local. Com frequência, as áreas particulares preservadas, vizinhas à reserva de Sooretama, recebem observadores de aves, que chegam ali, de muito longe, para ver de perto essas raridades das florestas brasileiras.
Ameaça: uma estrada no meio do caminho
Apesar do aumento considerável na última década dos registros de animais raros, a Reserva Biológica de Sooretama sofre com a proximidade a centros populacionais e estradas, rota de escoamento de produtos da região.
Estima-se que mais de 20 mil animais silvestres sejam atropelados por ano no trecho de aproximadamente 25 km na BR-101, que corta a reserva e seu entorno. Ao todo já foram contabilizadas cerca de 150 espécies diferentes de vertebrados atropelados, entre anfíbios, répteis, aves e mamíferos. Muitas delas estão ameaçadas de extinção, como a onça-pintada, a onça-parda e a anta.
Um caso que chama a atenção é o dos morcegos. A região da reserva registra uma grande diversidade deles, com cerca de 70 espécies identificadas, sendo que mais de 60% dessas espécies comprovadamente já foram afetadas pelos atropelamentos. Infelizmente, até uma nova espécie foi descrita, pela primeira vez para a ciência, através de um indivíduo atropelado.
Para Aureo Banhos, professor do Projeto de Ecologia de Estradas da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), a maior preocupação em relação a essa área protegida é justamente a possibilidade da ampliação da malha rodoviária. “O impacto da BR-101 é crítico não só em relação aos atropelamentos de fauna silvestre, mas também como um vetor de ocupação do entorno, intensificando o uso do solo, colocando pressão sobre a floresta, gerando desmatamento dos fragmentos próximos à reserva, bem como a competição pelo uso dos recursos hídricos”, alerta. “A facilidade de acesso e o aumento populacional trazem também outra grave ameaça para a fauna local: a caça comercial”.
Ações criminosas, praticadas por indivíduos equipados com tecnologia de ponta, foram captadas por câmeras de monitoramento de fauna do projeto da universidade.
Junto com o Ministério Público Federal (MPF), a equipe do Projeto de Ecologia de Estradas busca medidas para minimizar o impacto da rodovia. “Ela foi de certa forma um mau legado, inserida naquele cenário à revelia da legislação ambiental na época da ditadura, para o qual não havia planejamento ou estudos de impacto ambiental”, afirma Banhos. “Na época, a reserva já existia há ao menos 30 anos. Resta saber qual será o futuro da Rebio em relação à estrada”.
Além da colaboração com o MPF, há outra ação sendo realizada com estudantes de escolas locais. O Projeto Curupira, alusão à lenda do personagem que é o protetor das florestas, quer transformar os jovens em defensores da mata. Ao conhecerem melhor a região onde habitam, eles vivenciam uma mudança na percepção sobre a floresta. Mas o trabalho de conscientização não termina com essa geração. Moradores mais antigos do entorno também têm a chance de conhecerem um pouco mais sobre a diversidade da região e as questões ambientais ao seu redor.
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