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O uso seguro de agrotóxicos é um mito

Raquel Rigotto, professora do Departamento de Saúde Comunitária da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Ceará (UFC), participou como palestrante do Seminário Nacional Contra o Uso de Agrotóxicos, realizado de 14 a 16 de setembro na Escola Nacional Florestan Fernandes – Guararema, São Paulo. Coordenadora do Núcleo Tramas – Trabalho, Meio Ambiente e Saúde, pesquisa a relação entre agrotóxicos, ambiente e saúde no contexto da modernização agrícola no estado do Ceará. Nesta entrevista, ela defende o debate sobre uso de agrotóxicos como um tema estratégico e critica a ideia de que é possível utilizá-los de forma segura.

A entrevista é de Leila Leal e publicada pela Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio/Fiocruz, 30-09-2010.

Qual a importância da discussão sobre agrotóxicos na atual conjuntura?

Os agrotóxicos não podem ser vistos apenas como um conjunto de substâncias químicas que pode causar riscos químicos à saúde. Eles precisam ser entendidos no contexto em que são utilizados, que envolve o processo de modernização agrícola conservadora em curso no Brasil, que tem a ver com a reestruturação produtiva no campo e a divisão internacional da produção e do trabalho, na qual cabe ao Brasil a produção de commodities de origem agrícola. Esse contexto mais geral precisa ser considerado, assim como o entendimento do agronegócio não apenas em sua dimensão de latifúndios e monoculturas, mas também como um subsistema técnico e político que envolve o capital financeiro, a indústria química, a indústria de biotecnologia, sementes, fertilizantes, tratores, enfim, toda a indústria metal-mecânica.

Esse contexto determina a vulnerabilidade das populações aos agrotóxicos. E que populações são essas? Temos em primeiro lugar os trabalhadores das empresas, mas também outros segmentos de trabalhadores que são influenciados por esse processo, como os pequenos produtores.

No Ceará, os pequenos produtores foram colocados na condição de parceiros do agronegócio, o que na verdade é uma forma de terceirização. O cultivo de fumo no Rio Grande do Sul também é um exemplo disso, são pequenos produtores que estão completamente subordinados às exigências da indústria fumageira. Além desses trabalhadores, são atingidos os moradores dessas regiões.

No Mato Grosso, há municípios completamente cercados pelo agronegócio, que atinge até mesmo a reserva do povo Xingu: há rios que nascem fora de sua área e cuja água já entra no território indígena contaminada por agrotóxicos. Há também a questão dos consumidores de alimentos, que têm uma ingestão diária aceitável de veneno. É o ‘veneno nosso de cada dia’ na alimentação.

E, ainda, temos os trabalhadores que fabricam esses venenos. Há conflitos ambientais já identificados com esses trabalhadores de fábricas e as comunidades do entorno das fábricas, que são contaminadas. No nordeste, há uma fábrica de agrotóxicos que tem problemas sérios com 11 bairros na sua vizinhança por causa da sua contaminação atmosférica. Além disso, a questão dos agrotóxicos é abrangente porque vai nos ajudar a resgatar a interrelação campo e cidade.

Na medida em que o país se urbaniza, tendemos a pensar o Brasil como um país urbano – e há uma conotação simbólica de que isso nos aproxima mais do perfil dos países desenvolvidos e deixa para trás o ‘atraso do campo’ –, perdendo de vista que há uma dinâmica rural-urbana fundamental. Isso se expressa na produção de alimentos, na manutenção de riquezas naturais como a água, os microclimas, as chuvas (importantes para a cidade e ‘produzidas’ no campo) e também do ponto de vista da organização do campo.

A concentração de terra, que expulsa pessoas das áreas rurais, faz com que as cidades fiquem cada vez mais ingovernáveis, por causa da migração e de todos os processos de degradação da qualidade de vida, como a violência, as drogas e outros. Enfim, faz com que toda a problemática ambiental urbana cresça. Os agrotóxicos dão oportunidade para discutirmos tudo isso, e também para debatermos a ciência e seus limites hoje. Há substâncias químicas que nos mostram a insuficiência dos conhecimentos produzidos para que possamos ter alguma segurança ao lidar com elas. Um exemplo é o problema da exposição múltipla a vários ingredientes ativos, que ainda carece de respostas. São várias situações que nos colocam os limites da ciência e que também desafiam o Estado, porque não há como tratar os problemas dos agrotóxicos apenas como problema agrícola ou agrário, apenas como problema de saúde ou de meio ambiente. Esse é um problema que perpassa diversos setores das políticas públicas e exige uma atuação integrada, o que também é um exercício interessante de fazermos.

Na sua palestra no Seminário Nacional Contra o Uso de Agrotóxicos, foi destacada a importância de esclarecermos se estamos discutindo agrotóxicos e saúde ou agrotóxicos e doença. Qual a diferença entre as abordagens e o que isso significa para o debate?

Na cultura positivista que temos, existe uma certa tendência, tantos dos empresários como algumas vezes até da própria mídia, de procurar por agravos à saúde que pudessem ser atribuídos aos agrotóxicos, identificando e quantificando casos. É como se, para validar a questão dos agrotóxicos como um problema digno de atenção, relevante e urgente, dependêssemos disso, como se precisássemos ter geração e comprovação da doença para começarmos a pensar no assunto e nos problemas dos agrotóxicos. O que estamos propondo é que o conhecimento sobre a nocividade dos agrotóxicos está dado a priori, porque ao defini-los como agrotóxicos estamos dizendo que são biocidas, que fulminam a vida, e ao atribuir a eles uma classificação toxicológica que vai de pouco tóxico a extremamente tóxico também estamos deixando isso claro.

Não há nenhuma classificação que seja ‘não-tóxico’. O mesmo acontece em termos da classificação ambiental, que se relaciona à resistência do solo, e aos estudos da biomagnificação, teratogênese, mutagênese e carcinogênese [referentes ao acúmulo de produtos tóxicos ao longo da cadeia alimentar e à possibilidade de anomalias e malformações fetais, mutações genéticas e desenvolvimento de câncer]. Então, os agrotóxicos já estão classificados nesse sentido. Não há que se perguntar se são veneno ou remédio, está claro que são um tipo de veneno. Esse potencial de dano está dado, e defendemos que não precisaríamos provar a existência do dano para postergar políticas públicas e iniciativas dos agentes econômicos para combater esse problema. Poderíamos, desde já, estar trabalhando na perspectiva de que existe um risco e um contexto de risco, partindo para o controle desses riscos.

Por que é difícil estabelecer relações entre exposição humana aos agrotóxicos e os danos à saúde?

Os efeitos crônicos causados pela exposição a agrotóxicos são muito diversificados. Cada composto e princípio ativo tem um perfil toxicológico e uma nocividade própria, e isso se relaciona a uma série de patologias que vão desde dermatoses até infertilidade, abortamento, malformações congênitas, cânceres, distúrbios imunológicos, endócrinos, problemas hepáticos e renais… Mas todas essas patologias têm etiologias variadas, o que significa que podem ser causadas por outros elementos que não os agrotóxicos.

E, como somos acostumados a fazer raciocínio muito linear entre doença e agente causal, isso fica muito complicado. É possível, por exemplo, quando uma empresa quer se negar a assumir suas responsabilidades, que ela diga que o trabalhador teve uma leucemia porque a família tem carga genética para isso.

Do ponto de vista epidemiológico, os estudos têm evidenciado essas correlações, demonstrando que populações mais expostas, comparando com não expostas, têm carga maior de doenças. Mas gerar essa informação é difícil.

No caso do Ceará, o instituto que recebe a maioria dos cânceres hematológicos não tem na sua ficha de investigação o dado sobre a ocupação do trabalhador. Isso é um exemplo da dificuldade que temos para fazer um perfil que relacione a ocupação e, por consequência, o contato com agrotóxicos, a uma determinada doença.

Existe um discurso muito difundido de que os agrotóxicos seriam uma necessidade para garantir a produção de alimentos, e de que sem eles ‘o mundo morreria de fome’. A partir daí, a proposta é desenvolver formas seguras de lidar com os agrotóxicos. Qual a sua opinião sobre isso? O ‘uso seguro’ é possível?

A ‘Revolução Verde’, que é o momento que marca na história da humanidade a questão dos agrotóxicos, aconteceu há cerca de 50 anos. A humanidade tem cerca de 8 mil anos de história conhecida na agricultura, e nós vivemos e nos alimentamos por todos esses milênios sem os agrotóxicos e transgênicos (o que é um outro argumento muito comum agora, de que, de repente, não podemos mais viver sem os transgênicos). É claro, há relatos de que desde os povos mais antigos havia uso de algumas substâncias para controle de pragas e de processos de cultivo, a humanidade tem um acúmulo nesse sentido. Estou me referindo a esse uso massivo de agrotóxicos, estimulado pela indústria química, que pode fazer propaganda na televisão, ter isenção de impostos como o ICMS, IPI, Cofins, PIS/Pasep.

Então, a primeira coisa importante de tomarmos consciência é que já vivemos muitos anos como humanidade sem os venenos, e que depois do uso de venenos a produtividade da agricultura certamente elevou-se, mas a segurança e a soberania alimentar da humanidade não. Continuamos tendo quase um bilhão de pessoas desnutridas ou subnutridas no mundo, então está clara que essa não é uma crise que seja explicada pela subprodução, mas sim pela má distribuição. Isso se deve ao fato de que aquilo que o agronegócio e a modernização agrícola produzem não são alimentos, mas sim commodities, o que é muito diferente.

Há todo um aparato jurídico, institucional, legal, para regular o uso de agrotóxicos e o que vemos é que esse aparato não tem sido eficaz. O que se vê é que, desde o processo de normatização, houve interferência. Temos documentos dos produtores de agrotóxicos em que afirmam a sua estratégia de interferir no processo regulatório, fazer lobby, interferir na capacitação dos servidores públicos e dos operadores de direito que lidam com essa área.

Então, desde o início da regulação, há problemas. Quantos desses estatutos que estão previstos na legislação funcionam efetivamente? O receituário agronômico não funciona e há pouquísmos laboratórios, no país inteiro, que são capazes de fazer análise da água e da contaminação humana por agrotóxicos. Estamos agora no processo de revisão da Portaria 518, que diz respeito à potabilidade da água para consumo humano, e um dos grandes dramas é esse: podemos colocar lá todos os 450 ingredientes ativos de veneno registrados que temos no Brasil, mas onde vão ser analisados para cada uma das prefeituras de cada um dos quase 6 mil municípios do nosso país? Não temos essa capacidade instalada. Fazemos o licenciamento ambiental desse empreendimento, mas não temos condições de monitorar se as condicionantes e requisitos colocados no licenciamento são cumpridos, porque não há fiscal, não tem diária, não tem aparelho e laboratório.

Há também uma série de argumentos que foram trazidos pelo Censo Agropecuário, através do qual podemos constatar que há mais de 5 milhões de estabelecimentos com mais de 16 milhões de trabalhadores rurais dos quais um número significativo é de crianças, com escolaridade considerada baixa. Como podemos pensar em uso seguro numa vastidão dessa? A assistência técnica é precária. O Censo mostra que as propriedades que mais receberam assistência são aquelas acima de 200 hectares, ou seja, há milhões de propriedades de pequenos produtores que estão à revelia de assistência técnica. Como podemos imaginar que o uso seguro acontecerá assim? Qualquer pessoa pode chegar a uma loja e comprar o veneno que o balconista estiver interessado em vender e usar do jeito que o balconista ensinar. É muito difícil pensar em uso seguro assim.

Você falou em sua palestra que há um despreparo dos profissionais de saúde e do próprio SUS para lidar com essa questão. Como isso acontece?

Do ponto de vista da Política Nacional de Saúde do Trabalhador, temos previstas ações que vão desde a atenção básica – que seria principalmente através da Estratégica de Saúde da Família – até os Centros de Referência em Saúde do Trabalhador (Cerests), com ações hierarquizadas. A proposta é muito interessante. Mas o que vemos, especialmente no Ceará, é que a forma como o SUS chega aos territórios que sofreram profundas transformações pelos processos de mordenização agrícola é insuficiente.

Os profissionais da atenção primária estão completamente absorvidos pela assistência médica, têm pouco tempo de fazer as outras ações pensadas para sua atuação e conhecem muito pouco a dinâmica viva dos territórios em que as unidades de saúde estão inseridas. Então, têm poucas notícias sobre a instalação de empresas de agronegócio, não sabem se há trabalhadores migrantes que vêm para atender demanda de força de trabalho sazonal, para, por exemplo, a colheita do melão (que é um caso muito comum), que estão sem suas famílias e que isso causa a expansão de uma rede de prostituição — o que gera outros problemas, como gravidez indesejada na adolescência, uso de drogas, doenças sexualmente transmissíveis, inclusive Aids.

Então, para o sistema de saúde que está ali absorvido em diagnosticar e tratar doenças – embora estejamos tentando superar esse paradigma, isso nem sempre é possível –, é difícil enxergar essas dinâmicas. A resposta às novas necessidades de saúde tem sido insuficiente, é isso que mostrou o estudo realizado pela Vanira Mattos na UFC. Nos Cerests, há experiências ricas pelo Brasil afora, mas estou falando de um olhar local do Ceará. Ainda não conseguimos, ao longo dos três anos da nossa pesquisa, envolvê-los no atendimento a esses trabalhadores, nem desenvolver conjuntamente as ações de vigilância sanitária, epidemiológica, ambiental e em saúde do trabalhador, que ainda não estão acontecendo adequadamente.

Fonte – Raquel Rigotto, IHU On-line / EcoDebate de de 06 de outubro de 2010

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