Por Ellen Nemitz · ECO - 18 de dezembro de 2024 - Câmara ressuscitou “jabutis” da…
Pampa. O cultivo de soja é a maior ameaça
Para o professor Marcelo Dutra da Silva, os danos vão mais longe, pois o uso de glifosato pode estar contaminando solo, água e alimentos
Há pouco tempo, achava-se que a expansão do eucalipto colocaria em risco o Pampa, mas a leitura dos fatos agora é outra. “Sem medo de errar, hoje a maior ameaça ao Pampa vem dos cultivos de soja”, garante o professor Marcelo Dutra da Silva. “Basta sair por aí para perceber que os antigos campos de coxilha, tradicionalmente utilizados para a criação de gado, remanescentes de um modelo econômico em extinção, pelo menos em solo gaúcho, estão sendo rapidamente convertidos em lavouras de soja.”
Conforme o pesquisador, o impacto imediato do cultivo da soja “é a substituição dos campos por lavoura e, novamente, a perda de habitats”. Mas as ameaças vão mais longe. “A soja depende da aplicação de insumos perigosos, entre eles o glifosato que, apesar da sua utilidade agrícola, o seu consumo em lavouras pode estar contaminando o solo, a água e os alimentos”, projeta. Silva salienta ainda que há recentes estudos que relacionam a substância a casos de câncer e de degeneração neural. “E se a contaminação é um risco para as águas superficiais, certamente também é para as subterrâneas”, afirma.
A herança cultural imprimiu no imaginário da sociedade a “impressão de que o campo é um vazio”, como se a riqueza da vida fosse própria da floresta. Mesmo que o Brasil seja um país biodiverso, abrigando ambientes diversos, a legislação ambiental ficou impregnada da força simbólica da floresta. “A nossa principal lei de proteção e regramento do espaço nasceu como Código Florestal e assim é conhecida até hoje, mesmo que tenha sido revisada recentemente”, ilustra Silva. “O próprio processo de licenciamento ambiental parece ter mais cuidados e exigências quando o assunto é supressão de florestas, diferente do campo, que não enfrenta as mesmas restrições.”
Marcelo Dutra da Silva é graduado em Ecologia pela Universidade Católica de Pelotas – UCPel, mestre e doutor em Ciências pelo Programa de Pós-Graduação em Agronomia da Universidade Federal de Pelotas – UFPel. É professor do Instituto de Oceanografia – IO e membro permanente do Programa de Pós-Graduação em Gerenciamento Costeiro da Universidade Federal do Rio Grande – FURG. Coordena o Laboratório de Ecologia de Paisagem Costeira – LEPCost.
No dia 21 de março, das 19h30min às 22h, ele profere a conferência Pampa: um bioma em transformação, dentro da programação do evento Os biomas brasileiros e a teia da vida, promovido pelo IHU. Veja a programação completa.
IHU On-Line – Quais as maiores ameaças ao Pampa e quais os desafios para a sua preservação?
Marcelo Dutra da Silva – Sem medo de errar, hoje a maior ameaça ao Pampa vem dos cultivos de soja. Há pouco tempo, era a expansão do eucalipto, mas a soja está batendo recordes. Basta sair por aí para perceber que os antigos campos de coxilha, tradicionalmente utilizados para a criação de gado, remanescentes de um modelo econômico em extinção, pelo menos em solo gaúcho, estão sendo rapidamente convertidos em lavouras de soja. Na minha região, onde o arroz é muito forte, a soja vem substituindo, inclusive, as lavouras de arroz e as pastagens próximas.
IHU On-Line – Qual a importância do bioma Pampa para o ecossistema gaúcho e da América do Sul?
Marcelo Dutra da Silva – O Pampa compreende um sistema de fisionomias campestres e não campestres, ou seja, nem tudo no Pampa é campo e nem todos os campos são iguais. Na prática, a coleção de fisionomias do Pampa repercute em paisagens variadas, formadas por diferentes ecossistemas e formas de ocupação. Tais diferenças abrigam condições distintas e uma ampla diversidade biológica, pouco comum em outras regiões brasileiras ou da América. E é justamente no Rio Grande do Sul que essas diferenças são mais evidentes, talvez marcadas pela complexidade físico-geológica dos terrenos.
IHU On-Line – Como se dá a interação entre o Pampa e os demais biomas ao sul das Américas?
Marcelo Dutra da Silva – O Pampa é um sistema amplo, que se espraia por outros países, fazendo fronteira com outros biomas de características bem distintas. No sul do Brasil (Rio Grande do Sul), onde o Pampa ocorre, chama atenção a relação de disputa ou de tensão ecológica formada com a Mata Atlântica. Uma análise histórica de longo prazo, em consideração às mudanças no clima – a partir do último período glacial –, hoje mais quente e mais úmido, dá conta de uma condição mais favorável ao desenvolvimento de florestas e ambientes arbustivos. No entanto, ao longo da história, os pastadores de grande porte, o gado e as atividades humanas de cultivo interferiram nesse processo, e as árvores da Mata Atlântica avançaram com dificuldade. Resultado: boa parte das áreas abertas que encontramos hoje, pelo menos na maior parte do Pampa brasileiro (em solo gaúcho), seria fechada, coberta por floresta, se não estivéssemos aqui. E já que o clima não está conseguindo imprimir efeitos sobre a fisionomia e sim o agente humano, o nosso Pampa está mais para um antropobioma do que para um bioma natural, pelo menos por aqui.
IHU On-Line – O visual do Pampa remete à ideia de campo, o que faz com que muitas pessoas o vejam como campo vazio e propício para a produção agrícola. É nessa perspectiva, por exemplo, que entra a silvicultura e sua “propaganda” de florestar o Pampa. Como subverter essa perspectiva?
Marcelo Dutra da Silva – A impressão de que o campo é um vazio é da nossa herança cultural, passada de geração a geração. Aprendemos, desde criança, que a riqueza da vida está na floresta, que lá moram as espécies mais importantes, que a Amazônia é o pulmão do planeta… O Brasil é um país biodiverso porque abriga ambientes diversos, o que inclui o Pampa, suas características e sua riqueza biológica, que é única e que só encontramos aqui. Aliás, isso está impregnado na nossa legislação e conduta. A nossa principal lei de proteção e regramento do espaço nasceu como Código Florestal e assim é conhecida até hoje, mesmo que tenha sido revisada recentemente. O próprio processo de licenciamento ambiental parece ter mais cuidados e exigências quando o assunto é supressão de florestas, diferente do campo, que não enfrenta as mesmas restrições. E quando defendemos a reserva legal e a proteção das áreas de preservação permanente, não faltam produtores justificando: “na minha propriedade, não tem floresta, aqui só tem banhado e campo”. Enfim, distorções que moldaram a nossa percepção, mas que felizmente não feriram a nossa identidade. A paisagem aberta está no nosso DNA, e a ideia de transformar o Pampa em floresta não foi bem aceita, mesmo por aqueles menos preocupados com o campo.
IHU On-Line – Como compreender os avanços da silvicultura no Pampa e quais os riscos? Que espécies são mais utilizadas e quais os impactos sobre o bioma?
Marcelo Dutra da Silva – A expansão da silvicultura no Rio Grande do Sul aconteceu em um momento oportuno. Com a economia tradicional dos campos em declínio, abundância de terras e o empobrecimento da metade sul do Estado, a silvicultura é apresentada como a salvação da lavoura, o que logo se viu que não era bem assim. Uma economia forte é uma economia diversificada e não baseada em uma única fonte. A experiência com o eucalipto foi válida, mas não aprendemos a diversificar e, no momento, estamos apostando as nossas fichas no monocultivo da soja. Os riscos do cultivo de eucalipto estão associados ao impacto direto, de substituição do habitat e de expulsão das espécies, como se passássemos uma borracha na paisagem, apagando partes do espaço contínuo do campo. O impacto indireto está associado ao efeito fragmentação, com o crescimento dos maciços criam-se obstáculos ao fluxo espacial das espécies, que são nativas do espaço aberto. Também interferimos no vento, no acúmulo da umidade e aceleramos a transformação das manchas remanescentes de campo, que evolui para uma fisionomia diferente (campo sujo, às vezes arbustivo).
IHU On-Line – Quais os efeitos da plantação de soja em áreas próximas ou dentro do bioma Pampa? Quais os impactos nos reservatórios subterrâneos de água?
Marcelo Dutra da Silva – No que compreende o cultivo da soja, o impacto imediato é a substituição dos campos por lavoura e, novamente, a perda de habitats. Mas isso é só o início. A soja depende da aplicação de insumos perigosos, entre eles o glifosato que, apesar da sua utilidade agrícola, o seu consumo em lavouras pode estar contaminando o solo, a água e os alimentos. Estudos recentes levantam a suspeita da sua exposição aos novos casos de câncer e degeneração neural. E se a contaminação é um risco para as águas superficiais, certamente também é para as subterrâneas. Infelizmente, não existe uma rotina de monitoramento do glifosato, e não temos a menor ideia do grau de contaminação a que estamos submetidos. Muito importante: neste momento, acaba de ser anunciado na Expodireto, no município de Não-me-Toque, que mais uma vez batemos o recorde de produção de grãos, e a soja mais uma vez lidera, com a maior produção dos últimos dez anos.
IHU On-Line – A possibilidade de venda de terras a estrangeiros pode representar um risco ao bioma Pampa?
Marcelo Dutra da Silva – Não vejo problema, pois as preocupações quanto ao uso permanecem as mesmas, independentemente da nacionalidade. O que importa é o cumprimento da lei, a fiscalização do Estado e a garantia de avançarmos com qualidade e segurança.
IHU On-Line – A reformulação do Código Florestal impacta no bioma Pampa?
Marcelo Dutra da Silva – A reforma do Código Florestal aliviou a pressão sobre os usos e favoreceu os grandes proprietários de terra. O cultivo de grãos (arroz, soja e milho) e a atividade da silvicultura normalmente são encontradas em grandes áreas agrícolas, onde raramente as exigências legais do Código Florestal são atendidas. Aliás, o Rio Grande do Sul está entre as unidades federativas mais resistentes ao Cadastro Ambiental Rural, que no fundo é algo bom e importante. Infelizmente não estou acompanhando o desenvolvimento do ZEE [Zoneamento Ecológico-Econômico, também chamado Zoneamento Ambiental] no Estado, mas espero que os envolvidos estejam atentos às fisionomias dos nossos biomas, particularmente às macrofisionomias que compõem o bioma Pampa. O zoneamento do espaço é um belo instrumento de gestão, que permite avançar no planejamento e na definição de estratégias de conservação da natureza e ajustes dos usos reais praticados às potencialidades sugeridas. Portanto, zoneamentos bem construídos qualificam o uso da terra e direcionam os esforços de conservação dos ecossistemas e da biodiversidade. O único aspecto lamentável é que o ZEE avança em detrimento do Zoneamento Econômico e Ecológico Costeiro – ZEEC, que ficou esquecido por este governo, por considerar a costa contemplada no zoneamento maior. No entanto, o ZEE e ZEEC são semelhantes, apenas, no nome. O ZEEC compreende escalas e limites diferentes. A costa está exposta às atividades marinhas, ao assentamento urbano concentrado, portos e rodovias de alto fluxo. Além disso, a costa está compreendida no Pampa e nos revela paisagens únicas e exclusivas.
IHU On-Line – Quais os efeitos da pecuária no Pampa?
Marcelo Dutra da Silva – Os efeitos da pecuária são variados, porém mais positivos do que negativos. Pastadores constantes, o gado permite manter as áreas abertas e íntegras. Aliás, se tem uma atividade capaz de ser desenvolvida no Pampa, sem comprometer o campo nativo, é a pecuária. Obviamente, não é qualquer pecuária, e sim aquela praticada com características de sustentabilidade, baixa lotação e conforto animal. Na verdade, esta parece ser a única alternativa viável para a conservação das nossas manchas remanescentes de campo.
IHU On-Line – Quais os desafios para sensibilizar as populações, mostrando como o cuidado com o meio ambiente significa, em última medida, o cuidado com as pessoas mais carentes?
Marcelo Dutra da Silva – Em última análise, meio ambiente é SAÚDE. Cuidar da natureza é cuidar das pessoas. Em algum momento vai deixar de funcionar a justificativa do tudo pelo econômico. Afinal, a terra é uma só, e os recursos são naturalmente finitos.
Fonte – João Vitor Santos, Edição Vitor Necchi, IHU de 13 de março de 2017
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