Por Ellen Nemitz · ECO - 18 de dezembro de 2024 - Câmara ressuscitou “jabutis” da…
Panamá – Ressacas e superpopulação forçam indígenas gunas a abandonar ilhas
A ilha Caranguejo –
GUNA YALA – Bastou virar o vento para sentir o poder do mar sobre as 370 ilhas do arquipélago de San Blas, na comarca de Guna Yala, Panamá. Quando passou a soprar do norte, ondas de mais de um metro se levantaram sobre os corais em torno da ilha do Diabo (Niadub, na língua indígena guna). As águas, antes verdes, se turvaram com a areia revolvida e avançaram entre os coqueiros que sombreiam duas dúzias de cabanas para turistas.
A elevação no nível dos oceanos, provocada pelo aquecimento global, não é a única dificuldade a rondar os gunas. Crescimento populacional (60% entre 1920 e 2000), hordas de turistas e desentendimentos com o governo panamenho também ameaçam o modo de vida tradicional nas ilhas do território semiautônomo.
Victoriano Martínez, piloto do barco, Edwin Smith, proeiro, e Rommel Bastidas, guia de turismo, viram o mar lamber suas barracas armadas perto da linha de maré. Mudaram-nas para mais longe sem uma palavra de queixa. Em minutos estavam a postos na lancha de fibra de vidro com a bandeira vermelha e amarela mostrando uma cruz suástica invertida do Onmaggeddummad Sunmmagaled (Congresso Geral Guna).
Acima, ilha Formiga (Sichirdub), com continente ao fundo; no alto, 3 dos 6 filhos do pescador Tony Castro Pérez na cabana em que vivem 3 meses do ano – Lalo de Almeida/Folhapress
O destino da equipe era a ilha Formiga (Sichirdub), um afloramento de areia e coral com não mais que 40 m². Ali se ergue a cabana de palha em que Tony Castro Pérez, 46, vive durante três meses do ano, com seis filhos e a mulher.
Parecia que a ilhota iria desaparecer sob as ondas, com a mudança do vento. Mas ela só se encolheu, e os filhos, que não haviam saído para pescar, saltavam entre os troncos de coqueiro e muretas de coral que a protegem da erosão.
O chefe da família buscava nos manguezais de ilhas vizinhas os peixes para uma festa de quatro dias na comunidade em que mora nos meses restantes, na ilha de Pedra (Aggwadub). Ao notar o movimento na Formiga, aproxima-se remando sua canoa. Após vários minutos de negociação com o guia, que lhe mostra as cartas de autorização do Congresso, concorda com a realização de fotografias e entrevista.
Castro encara com desdém a ressaca, que não chegou a inundar seu casebre, como noutras tempestades. “Estou acostumado às mudanças do vento e do mar. Deus me deu esta terra, vou ficar para sempre, morrer aqui. Não tenho medo.”
Onde ficam as ilhas do povo guna
O povo guna é originário do oeste da Colômbia. No século 16 migrou para as montanhas San Blas, onde hoje fica a comarca de Guna Yala, território semiautônomo no Panamá
Em meados do século 19, os gunas começaram a ocupar as 370 ilhas do arquipélago para escapar de doenças como malária e febre amarela
O pescador também faz pouco caso da elevação do nível do mar prevista pelos estudiosos do clima. Para gunas como ele, quando o mar sobe é porque estão nascendo mais peixes. “Só creio em Deus. Cabe a ele dizer se a ilha vai desaparecer ou não.”
A virada do tempo em dezembro de 2017 não se compara com a tempestade de novembro de 2008. Essa ainda segue viva na memória dos mais de 30 mil habitantes de Guna Yala, estreito território semiautônomo no leste do litoral atlântico panamenho.
Por duas semanas, a maior parte das casas permaneceu inundada. Na ilha mais apinhada, Caranguejo (Gardi Sugdub), a comunidade se reuniu para rezar na casa cerimonial do Congresso. Dois anos depois, em 2010, cerca de 300 famílias de Sugdub se alistaram para uma mudança definitiva à “terra firme” e se tornaram assim algumas das primeiras pessoas deslocadas pela mudança climática.
Pressionados também pela superpopulação em algumas das ilhas, planejam fazer meia volta em direção ao continente de onde seus ancestrais partiram, em meados do século 19, para escapar das doenças e dos espanhóis. Só em Sugdub são cerca de 2.000 pessoas numa área menor que dez campos de futebol.
A vulnerabilidade dos gunas decorre da baixa altitude das ilhas de San Blas, formadas por corais. A costa caribenha do Panamá observou aumento do nível do mar de cerca de 2 mm/ano no século passado, em linha com a média global (1,7 mm/ano). O ritmo avançou para 6 mm/ano nas últimas décadas.
Na média, estima-se que os mares do mundo subiram 20 cm desde o início da Era Industrial. Boa parte disso decorre de sua expansão térmica, ou seja, da dilatação sofrida pela água ao aquecer-se. Cresce, contudo, a contribuição dada pelo derretimento de geleiras terrestres, principalmente as do Ártico –região do planeta mais afetada pelo aquecimento global, onde a temperatura vem aumentando com o dobro da velocidade do restante do mundo.
O Painel Intergovernamental sobre Mudança do Clima (IPCC, na abreviação em inglês), órgão criado pela ONU e pela Organização Meteorológica Mundial, prediz que os oceanos subirão algo entre 44 cm e 74 cm até o final deste século, porém não exclui que o avanço alcance 1 m. Seria o bastante para inundar boa parte das cidades costeiras e para riscar do mapa países como Tuvalu ou Kiribati –além de submergir a maioria das ilhas de San Blas.
As previsões do IPCC, entretanto, já são consideradas muito conservadoras. O derretimento de geleiras se acelera, e só a Groenlândia perdeu 375 bilhões de toneladas por ano –pense num cubo de gelo com 7 km de aresta– entre 2011 e 2014, segundo divulgou o Conselho Ártico (fórum integrado por Canadá, Dinamarca, Estados Unidos, Finlândia, Islândia, Noruega, Reino Unido e Rússia). As projeções mais recentes falam em 2 m.
Os 20 cm ganhos com um aumento da temperatura de apenas 1,1ºC podem parecer coisa pouca, mas, somados com marés mais fortes (de sizígia, nas luas cheias e novas) e tempestades com ventos intensos em direção à costa, ocasionam ressacas possantes e destruidoras, que turbinam a erosão marinha.
Os gunas empregam as mãos e pedras de coral e até lixo para conquistar terreno ao mar. Em lugar de resguardá-los, a prática, na verdade, pode aumentar sua exposição aos rigores do mar do Caribe, indicam cientistas.
O estudo de caso mais abrangente sobre os gunas e suas ilhas em San Blas foi publicado em 2003 pelo periódico científico “Conservation Biology” e tinha como autor principal o costarriquenho Héctor Guzmán, do Instituto Smithsonian de Pesquisa Tropical no Panamá (STRI, na sigla em inglês).
Com base em levantamentos aéreos feitos 30 anos antes, estabeleceu-se que a subida do mar tinha subtraído cinco hectares (50 mil m²) das ilhas não habitadas do arquipélago. Em compensação, os aterros tinham agregado outros 6,2 hectares às comunidades insulares.
Nada menos que 20 km de muros foram erguidos. O ganho de área habitável foi devastador para os recifes de coral vivo. Eles cobriam 60% do arquipélago, nos anos 1970, e a depredação os reduziu para 13%.
Como os recifes também são barreiras físicas e atenuam a força das ondas durante tempestades, o esforço épico dos gunas acabou por deixá-los mais vulneráveis a eventos extremos como as chuvas de novembro de 2008.
O bom e o ruim nessa estratégia de sobrevivência ficam visíveis na ilha Mosca (Gugurdub). Rodeada por uma contenção de coral com 30 cm de altura, boa parte do terreno de 200 m² está preenchida com embalagens de alimentos industrializados.
No centro da ilhota restam só os postes de troncos de coqueiros que sustentavam o telhado de uma casinha. Ainda visível em imagens de satélite, ela foi destruída numa das tempestades que varrem San Blas de dezembro a abril.
A partir do artigo de Guzmán, o flagelo dos gunas foi eleito como caso exemplar de vítimas do aquecimento global por ONGs internacionais como a Displacement Solutions.
Num vídeo de animação com três minutos, produzido pelo Congresso com apoio do Smithsonian e da Embaixada do Reino Unido no Panamá, o locutor diz na língua local: “Temos um futuro difícil pela frente. A mudança do clima está aquecendo o oceano, levando a uma elevação gradual do nível do mar e possivelmente a tempestades mais fortes. No curto prazo, precisamos pensar em nossa mudança das ilhas para o continente.”
Acima, ilha de San Blas em processo de ampliação (estacas no centro da foto); na imagem do meio, a pouca profundidade das ilhas de coral; no alto, uma ilha ocupada do arquipélago – Lalo de Almeida/Folhapress
A casa de Victoria Navarro na superpopulosa ilha Caranguejo não tem mais que 80 m². Ali vivem 15 pessoas, cujas roupas se espalham pelos varais do pátio compartilhado com outra cabana e pelo chão de terra batida.
Numa antessala, a senhora recostada na rede borda uma “mola”, parte principal da vestimenta tradicional das mulheres. No cômodo central, em outra rede, três crianças improvisam um karaokê com celular. Atrás delas, o marido da matriarca, Raulio Harris, retira pães do forno.
“Em nossa tradição, que tem milhares de anos, já nos acostumamos com o nível do mar. Há 60, 70 anos a água chegava aqui até os joelhos com a maré”, explica Navarro. Ela é a escolhida pelo Congresso Geral para coordenar o êxodo de cerca de 220 famílias da ilha para Barriada, um terreno de 17 hectares no continente, de onde se avista parte do arquipélago. As outras 80 famílias alistadas para uma mudança definitiva à “terra firme” são de egressos da Caranguejo que vivem na Cidade do Panamá.
“Mas é claro que estamos preocupados com os nossos netos”, concede. “Ninguém sabe se vai acontecer ou não. Queremos estar preparados.”
Navarro diz que não há mais espaço para construir na sua ilha, nem para as crianças brincarem. Há muitas delas correndo pelas vielas, com sacos de Infladitos, um salgadinho, e refrigerantes coloridos Cappy. A ilha tem jeito de favela e um poste com painel solar em cada casa, que fornece energia suficiente para quatro lâmpadas, uma TV de 20 polegadas e a tomada de recarregar celulares. Durante a entrevista, o tradutor Sérgio López usa o aparelho para tomar notas.
A líder comunitária Victoria Navarro diz que o planejamento da mudança começara sete anos antes. Não contavam com o apoio do governo panamenho. Adquiriram de gunas da própria comunidade a área da Barriada, que fica na mesma comarca e margeia a estrada asfaltada e sinuosa que leva turistas da capital para os ancoradouros de onde partem as lanchas de fibra de vidro destinadas ao arquipélago.
O terreno já está desmatado, mas não há sinal das 300 casas prometidas três anos antes pelo governo, como parte do projeto Tetos de Esperança, similar ao Minha Casa Minha Vida do Brasil. Saíram todas as licenças, e o Ministério da Habitação e Ordenamento territorial fez uma licitação no valor de US$ 9,4 milhões (cerca de R$ 30 milhões), vencida pela construtora HOS.
Seus engenheiros já estiveram duas vezes no local, até janeiro, quando deveriam começar as construções, o que não ocorreu. Faltava ainda o aval derradeiro da Controladoria Geral de República do Panamá.
A ausência de casas e de população local não impediu o governo de erguer, em área vizinha, uma escola-modelo com dezenas de salas de aula, laboratórios, dormitórios e um ginásio com sete degraus de arquibancadas. Tudo vazio. O mato cresce entre as passagens cobertas que ligam um prédio a outro. Mais adiante, as obras de um hospital sequer foram concluídas.
“Achamos engraçado. Tinham de construir as casas primeiro”, comenta Nádia Ehrman Pérez, que secretaria a comissão de reassentamento na Cidade do Panamá.
Ela recebe a reportagem no restaurante do Centro Gardi Sugdub, para onde convergem os gunas da capital em busca de “dule masi”, o ensopado de peixe, mandioca, banana e coco tradicional nas ilhas.
“Nossos anciãos não pensavam em pedir ajuda do governo. Aí entraram os jovens, sociólogos, ambientalistas. Agora é tudo com o governo. Talvez se tivéssemos mudado, pronto, já estaríamos vivendo lá”, conjetura. Ela confirma que a elevação do mar tampouco estava em pauta quando os “saglas” (pronuncia-se “saila”) da Caranguejo tiveram a ideia de deslocar a comunidade para terra firme.
“As inundações estão mais frequentes agora”, diz. “Com a mudança do clima e as enchentes, nossa gente se deu conta de que era necessário mudar, mas nem todos quiseram. Nossos avós não deram muito crédito [às notícias sobre clima].”
Giuseppe “Olo” Villalaz, jovem guna formado em matemática que participou de quatro conferências internacionais sobre mudança climática, explica que o conceito abstrato é de difícil assimilação pelos mais velhos. Seu foco está em conviver com a natureza e suas intempéries, não em lutar contra elas.
O problema é que nem mesmo existe uma expressão na língua guna para essa noção. Quando falam com os anciãos, os jovens que circulam pelo Panamá e pelo mundo recorrem a algo mais concreto, “neg guaimai”, que quer dizer mudança de temperatura.
Depois de traduzir a entrevista de Victoria Navarro, Sérgio López se apressa a esclarecer que entre pessoas mais jovens como ele (39 anos, 4 filhos) ninguém tem dúvida sobre a mudança climática. Diz que a incompreensão dos mais velhos está enraizada na cultura: a montanha com florestas e caça é a mãe dos gunas, as árvores são seus primos, os rios, irmãos –e o mar é a avó, que dá de comer o peixe de cada dia.
Antes de cortar árvores ou corais, pedem-lhes permissão. Existe o costume de falar com as ondas para que se acalmem, quando o mar encrespa. Ameaçam o vento e as nuvens com paus e facões, na tentativa de amedrontar tempestades, mas, por via das dúvidas, no passado construíam casas sobre palafitas para enfrentar as inundações, uma prática hoje em desuso.
Já o tsunami que varreu o arquipélago no terremoto de 1882 eles atribuem ao castigo de Baba e Nana (Deus) por supostos desvios de comportamento, explica o tradutor e empresário, que vive do turismo e do comércio de gasolina para as lanchas. É como se a divindade cindida dissesse aos gunas: “Estou vivo. Vejam a força com que posso mudar o mundo. Comportem-se”.
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