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Parece floresta, mas não é: Filme escancara o que é a produção de monocultura de eucalipto

Por Marcio Isensee e SáEco – 23 de agosto de 2021 – Documentário MATA acompanha a vida de pessoas impactadas pelo deserto verde da produção de eucaliptos no extremo sul da Bahia. – Documentário MATA é dirigido por Fábio Nascimento e Ingrid Fadnes. Foto: Fábio Nascimento/Divulgação.

São 79 minutos de filme e somente 4 personagens. Parece pouco para mostrar a complexa relação entre comunidades locais e as gigantes plantações de eucalipto no extremo sul da Bahia, mas ao final do documentário é possível concluir que, embora tente-se com retóricas narrativas definir aquilo como produção sustentável, os impactos ambientais e sociais são indiscutíveis.

Conversamos com Ingrid Fadnes, diretora do documentário MATA, que estreia no Brasil na Mostra Ecofalante de Cinema e ficará disponível para exibição online entre os dias 24/08 e 05/09. Neste bate-papo, Ingrid nos contou como surgiu a ideia do filme, que pretendia ser um pequeno curta atrelado ao projeto em que estava envolvida, mas acabou consumindo cinco anos de muita imersão e trabalho. Para ela, o filme abre um debate que muitas vezes negligenciamos, que é o impacto da indústria da celulose nos ecossistemas. Norueguesa, mas com um portunhol afiado, Ingrid discorre sobre os investimentos que o capital de seu país faz nesse setor e a expansão que está ocorrendo nos países latino-americanos.

“Quando você vê árvores, você acha que é uma floresta, e o discurso das empresas é que são florestas “plantadas”. Então a palavra floresta é uma palavra equivocada nesse discurso, não deveria chamar de floresta porque não é”, diz Ingrid Fadnes.

Leia a entrevista na íntegra:

((o))eco: Ingrid, eu queria que você contasse um pouquinho da história do filme: como é que ele surgiu, por que vocês resolveram fazer esse projeto, onde é que ele está inserido?

Ingrid Fadnes: [O projeto] surgiu em 2015 quando eu fui para o extremo sul da Bahia para trabalhar com o Movimento dos Sem Terra (MST) e eu estava com um grupo da Noruega que se chama Brigadas de Solidariedade, que é uma colaboração entre uma organização norueguesa [Comitê] com o MST, que existe desde muitos anos atrás, eu acho que há 20 ou 25 anos. E eu fui lá com esse grupo da Noruega e o MST colocou a gente justamente ali por conta do eucalipto e pelos investimentos da Noruega nas empresas de eucalipto nesta região.

Então a gente foi lá em setembro de 2015 e começamos fazer umas pesquisas sobre as monoculturas de eucalipto na região e sobre a história do eucalipto no Brasil, que tem muito a ver com o capital norueguês. E eu conheci o Fábio Nascimento em maio de 2015, no acampamento Terra Livre, em Brasília. Então quando eu estava lá eu convidei o Fábio, porque ele é um fotógrafo excelente. Ele tem muita experiência no trabalho com documentário e eu falei para ele que era super interessante a situação no extremo sul da Bahia, tanto visualmente: como é que é plantado, como as plantações vão ocupando os territórios, como se confunde a floresta natural nativa com uma floresta plantada, e também no discurso. Essa confusão surge a partir do discurso.

E o Fábio veio comigo, acho que foi dezembro de 2015, quando eu estava acabando o trabalho e a gente começou a filmar. A gente filmou muito com o drone e ficamos realmente apaixonados pelas imagens e de observar as plantações de cima, como um passarinho, de olhar como é que a terra é alterada pelos seres humanos, o que acontece com os rios e lagoas.

A gente começou a procurar o que podíamos no Google Maps para identificar onde é que tem água nessa região e a gente ia lá para filmar e nunca achava a água. Era tudo seco e nesse ano estava bem seco. Em 2015 estava super seco no extremo sul da Bahia, havia muitas queimadas dentro das plantações, fora das plantações, nos Parques Nacionais. Então a gente começou a registrar tudo e achávamos que íamos fazer um filme curto, acompanhando um trabalho da organização da Noruega que fez, nesse tempo, informes sobre o eucalipto no extremo sul do Brasil e o capital norueguês. Então a gente lançou esses informes na Noruega e descobrimos que tinha muito mais que um filme curto no material que a gente estava fazendo. Aí tomamos a decisão de continuar. Também porque a gente começou a identificar que se fala realmente pouco sobre as plantações de árvores e que aparecem muito nos discursos das mudança climática, que plantar floresta é bom para o meio ambiente, para a captura do carbono e tudo isso. Então a gente queria ir mais fundo, ouvir esse discurso, ouvir as pessoas que moram no extremo sul: como é morar do lado dessas plantações, que são gigantes. Então assim surgiu a ideia e cinco anos depois a gente terminou. A gente não tinha pensado que ia trabalhar tanto tempo.

Uma coisa que me chamou a atenção é que, de uma forma geral, se você olhar para filmes de temática socioambiental, eles estão sempre buscando questões de cadeia produtiva, os responsáveis, o certo e o errado e por aí vai. Mas o filme de vocês não, ele vai por outro caminho. Queria que você falasse um pouquinho sobre essa escolha, por que não apontar para a cadeia de produção e falar de uma forma menos direta?

Etevaldo Pereira. Foto: Fábio Nascimento/Divulgação.

Enquanto fazíamos o filme, uma referência muito importante para nós, a primeira conexão entre Fábio e eu, foi Patricio Guzmán, que é um cineasta chileno. Ele fez uma trilogia da história do Chile e o primeiro filme chamado Nostalgia da luz é o filme favorito de nós dois. E o Patrício Guzman tem uma linguagem, como cineasta, que é muito de ir procurando através do filme, ele faz muitas perguntas durante o filme e ele observa. Ele deixa a pessoa olhar e escutar o que ele está escutando, mas sem tomar decisões para nós e a gente gosta muito dessa linguagem. Então foi um filme que a gente viu várias vezes durante o processo para relembrar como podemos comunicar uma coisa tão destrutiva como o eucalipto.

Em vez de falar diretamente para as pessoas “assim são as coisas”, tentamos só mostrar o que a gente viu nesse território e a partir daí a ideia é que as pessoas podem começar a questionar, porque as plantações de árvores você tem no mundo inteiro. Na Europa também tem: a Suécia e a Finlândia estão cheias de plantações de árvores para a produção de celulose. Então a ideia era essa: usar uma linguagem que pudesse convidar as pessoas para o extremo sul da Bahia, para estar ali. A gente não queria sair de lá, ir dentro de um escritório ou ir com o papel para a Europa. A gente não queria sair do Extremo Sul da Bahia, mas ficar lá o tempo todo e deixar as pessoas olharem tudo o que a gente conseguiu registrar.

A gente tomou essa decisão de trazer só dois personagens além do Etevaldo Pereira e do Rodrigo Mãdy, que são do MST e do povo Pataxó [respectivamente]. O Walter de Paula Lima é um dos poucos pesquisadores que está há décadas pesquisando sobre plantação de árvores e água, que é uma questão super importante. E a Ivonete Gonçalves de Souza, porque é uma pessoa que tem trabalhado o tema de eucalipto de forma mais sistemática na região do Extremo Sul da Bahia, desde a década de 1980. Então essas duas pessoas tinham uma certa voz dentro desse debate e a gente achou interessante trazer eles para o filme. A gente jogou fora um monte de outras pessoas que são pesquisadores super legais, bem informados, que têm uma quantidade de pesquisas que são super importantes, mas a gente achava que ficaria um tipo de filme de informação. A gente não queria fazer isso.

Eu tive uma percepção, vendo o filme, de que a terra é o elemento central. A disputa por terra, a disputa pelo território. Essa foi a percepção que vocês tiveram também estando lá no campo. Foi isso que vocês quiseram passar de mensagem? E o que é que você vê para essa região, que é uma região em que o eucalipto tomou conta?

Rodrigo Mãdy. Foto: Fábio Nascimento/Divulgação.

Eu acho muito legal que você ache que o tema central é terra, porque realmente é: terra e floresta, mas a floresta cresce da terra, a terra que dá vida, né. Então para mim tem três cenas, três pontos no filme que explicam tudo, que a gente poderia resumir o filme nessas três cenas. [A primeira é] Quando o cara do ICMBio pega a terra na mão, durante uma reunião com os Pataxó, ele abre a reunião desse jeito. É a primeira vez que ele vai falar com os Pataxó e a primeira coisa que ele tenta fazer é explicar para eles o que é terra. E mais tarde nessa reunião, bem no final, o Rodrigo Mãdy pega a terra de novo na cara dele [servidor do ICMBio] e diz:  “você diz que você sabe o que é a terra, você não sabe, quem sabe somos nós, porque a gente mora aqui”. Eu acho muito forte porque essas duas cenas explicam toda a diferença entre como é que um camponês, indígena ou uma pessoa que mora na terra, no território percebe a natureza ao redor deles e o que acha alguém que mora longe disso, da indústria ou do estado, de alguma instrução. Tem essa outra cena quando o Etevaldo, bem no final do filme, tem uma fala super simples, que você acha quase sempre demais, mas eu acho que nenhum pesquisador que esteja há 40 anos na universidade pode explicar em tão poucas palavras, algo tão central que é a terra. Ele fala: “a gente precisa da terra, mas a terra não precisa de nós”. E com isso ele diz tudo: a gente está destruindo a terra na forma como a gente está usando e abusando dela.

O Brasil é um dos grandes produtores de celulose do mundo. Mas aqui a gente tem vários problemas socioambientais, estamos olhando muito para o desmatamento, um problema do século passado que persiste. Então eu queria que você comentasse: o que é a indústria da celulose no Brasil, o que ela representa no mundo e por que a gente não olha tanto para ela como um problema socioambiental?

Quando você vê árvores, você acha que é uma floresta, e o discurso das empresas é que são florestas “plantadas”. Então a palavra floresta é uma palavra equivocada nesse discurso, não deveria chamar de floresta porque não é. São plantações da indústria, plantadas para servir uma função econômica, para fazer papel branco, papel higiênico. Eu acho que isso é talvez a maior razão por que a gente não tem um debate maior sobre essas plantações. Eu acho que está mudando um pouco e isso tem a ver com as queimadas, especialmente na Europa. Não só deste ano, mas de anos passados. Por exemplo, em 2017, em Portugal, morreram quase 70 pessoas em uma queimada de plantações de eucalipto. Quando queima uma plantação de eucalipto, quando está seco e você não tem água, é uma explosão, queima muito rápido. E agora o debate tem virado mais para isso. Aqui na Europa eu acho que já tem um maior conhecimento de que a gente perdeu as florestas nativas, e que as florestas nativas são fundamentais para cuidar da biodiversidade, da natureza. Uma plantação de árvores não pode cuidar da biodiversidade, ela mata a biodiversidade.

Eu acho que a gente tem que falar sobre isso muito claramente, mas as empresas que estão na indústria de celulose ou da indústria das plantações de árvores são muito poderosas porque estão na mesma linha do agronegócio. No Brasil, a Suzano é uma empresa gigantesca que você jamais vai poder ter uma entrevista com eles, jamais você vai entrar nas fábricas. A gente tentou durante quatro anos e foi impossível. É a mesma coisa com Veracel, que é a outra empresa que opera no extremo sul da Bahia que é um joint venture entre a Suzano e a sueco finlandesa Stora Enso. Eles não entram no debate de jeito nenhum. E eles vão expandindo, em uma velocidade muito rápida, no Brasil, Uruguai, Chile. O Uruguai tem planos enormes para plantações de eucalipto e portos novos para transportar isso para Europa. E a Colômbia que nesse contexto dos acordos de paz tem aumentado muito os conflitos pela terra. Uma das empresas que tem crescido muito ali é a Smurfit Kappa, outra empresa internacional que tem agora conseguido o controle de territórios enormes para fazer eucalipto. E a Noruega está em todas as suas empresas com investimentos de dinheiro do fundo de petróleo da Noruega, está em todas essas empresas.

Tem outra coisa também que é pouco falada, porque a gente acha que a gente usa menos papel, porque tem mais coisas digitais, né? Então acho que nas cabeças das pessoas é que a gente não está usando a impressora, a gente não tem jornal, tudo isso e não é verdade. O consumo de papel só está crescendo.

A sequência inicial do filme, uma cena noturna, com uma luz obscura, é meio aterrorizante, quase um thriller, e me impressionou muito. Não dá pra entender, de repente a árvore se mexe e cai, é uma loucura e é muito aterrorizante. A partir dela me perguntei: o que representam, para vocês que fizeram o filme, as plantações de eucaliptos? Talvez ali vocês estejam resumindo o que vocês sentiram nesses cinco anos da produção do filme?

Essas cenas falam o que a gente sente, né? É um thriller mesmo, é terror ver as alterações humanas na terra. É assustador realmente ficar lá e observar e acho que a gente chegou a um grau de loucura no processo de fazer o filme, porque era sem fim. Ficamos lá durante quatro anos filmando, em várias etapas e isso também acho que é um ponto importante porque a gente estava observando durante o tempo. E era sem fim e sem solução para as pessoas que estão morando lá. Então acho que é isso: é terror.

Eu acho que o termo mudanças climáticas é muito abstrato. Creio que alterações humanas é mais concreto. E quando eu apresento o filme para estudantes, ou uso para conversar sobre isso, em vez de discutir o clima, que é uma coisa abstrata (embora que a gente possa ver chuvas fortes, inundações, florestas queimadas), o que a gente pode é observar como está alterado a natureza ao redor da gente. Seja no Brasil, na Noruega, começar a perceber o que é a natureza ao redor da gente, o que é natural da natureza ao redor da gente. E quando você começa a entender que tudo é alterado por nós e tudo com um preço de perder uma quantidade de biodiversidade, então é assustador realmente.

Chamam essa plantação de floresta. Foto: Fábio Nascimento/Divulgação.

Eu queria conhecer um pouquinho mais da sua história. Como é que você chegou até o Brasil? Como é que você começou a se relacionar com audiovisual? Como é que isso entrou na sua vida?

Eu nasci na Noruega e me criei na Noruega, mas com 17 anos eu saí pela primeira vez para a América Latina influenciada pela minha irmã que é mais velha do que eu e foi para o Chile para fazer um ano de intercâmbio. Então eu conheci o Chile, e toda a sua história, a luta, e aí eu também quis ir para a América Latina. Aí eu fui para a Costa Rica que é um país que tem uma biodiversidade incrível. É impressionante estar lá e aprendi também muito sobre florestas, biodiversidade. Comecei a me interessar pela América Latina, pela história e pela luta de vários movimentos sociais, indígenas. Para mim, voltar para a Noruega era só para procurar a forma de sair de novo. Então eu morei talvez uns 12, 13 anos na América Latina entre México, América Central e Brasil.

Quando eu estava nesses anos na América Latina, comecei a trabalhar com jornalismo com plataformas de meios independentes no México e na Guatemala, no Centro de Medios Independientes. E eu comecei a contar histórias. Mas na verdade eu trabalhava muito mais áudio. Eu faço documentários para rádio. Então para fazer esse trabalho para mim era fundamental colaborar com o Fábio Nascimento, porque ele é quem manda bem no visual e é ele que faz toda fotografia do filme, que sabe como filmar uma cena. A gente teve outra pessoa no som direto, que é o Henrique Ligeiro, e eu acho que a minha contribuição no filme é mais a narrativa investigativa do filme.

E foi o primeiro filme que você fez?

Sim. Primeiro e único até agora (risos).

Eu tenho outras ideias que gostaria de fazer, mas também tenho muito respeito pela área do audiovisual e todo o trabalho que é fazer um documentário. Eu não tinha ideia quando comecei. É muito trabalho. Não é uma coisa fácil documentar e depois ir criando uma história, achar personagens que querem estar no filme. Isso também é importante: a gente tinha várias pessoas que a gente gostaria de entrevistar, mas que não queriam, não queriam representar toda uma problemática internacional e tudo mais. Mas a gente teve muita sorte, tanto com Etevaldo como com o Rodrigo, que são duas pessoas superlegais.

Estou pensando e com certeza vou voltar para América Latina, só que acho que vai ser para o ano que vem. Porque o jornal onde eu trabalho também faz matérias boas internacionais. Acho que a ideia seria tentar fazer algo aqui com o jornal que agora eu trabalho e tenho uma ideia de outro documentário que é na América Latina, então pode ser.

Como vocês esperam que esse filme será recebido? Vocês acham que terá alguma repercussão na própria cadeia de produção e se esses atores também vão olhar para isso e ficar incomodados, Questionarem o filme?

Eu acho que agora, apresentando o filme, vai ser acompanhado de conversas e debates. Na Noruega passou em dois festivais até agora, com debates, com essa possibilidade de apresentar a temática do filme. Também foi apresentado na Dinamarca e vai ser apresentado na Finlândia agora em Novembro. Porque também é mais concreto para as pessoas saberem que o papel que usam tem uma história por detrás. Não quer dizer que você tem que boicotar e não usar, mas é a forma como opera a indústria: operar quase sem restrições de como plantar e como fazer.

Então a gente espera que o filme possa ampliar o debate e que a gente possa trazer o filme para vários países da América Latina que compartilham muito essa problemática e que a gente possa fazer pontes entre os países. Como a Noruega, Finlândia e Suécia, que são grandes na indústria do papel, e pessoas na América Latina que estão lutando pelo território, que é a terra deles.

E tem outras organizações que trabalham com essa temática. Então é legal também para reforçar o trabalho de outras organizações, tanto do MST quanto dos Pataxó.

Mas as empresas, eu acho que o filme não é para eles, nem para eles se assustarem (ainda). Eles vão se assustar quando o povo começar a questionar muito mais e exigir. A partir dos últimos informes do IPCC, acho que tudo isso é uma coisa que vai caminhar e as empresas, em algum momento, vão ter que parar. Esperamos.

 

 

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