Por Jean Silva* - Jornal da USP - 1 de novembro de 2024 - Tucuruvi,…
Parte do solo do ártico não está mais congelando – nem mesmo no inverno
O chão afunda em Duvanny Yar, um megadesmoronamento de permafrost ao longo do rio Kolyma no norte da Sibéria. Novos estudos sugerem que parte da terra no Alasca Ártico e na Rússia nem sequer congelam mais. Este local de constantes deslizamentos móveis, causados pela erosão e acelerados pelo aumento das temperaturas, é um local importante de pesquisa para os cientistas, que o utilizam para monitorar o que acontece quando começa o derretimento em uma região rica em carbono congelada há séculos. FOTO DE KATIE ORLINSKY,
Novos dados de dois pontos do Ártico sugerem que algumas camadas da superfície não estão mais congelando. Se isso continuar, os gases-estufa do permafrost podem acelerar as mudanças climáticas.
CHERSKIY, RúSSIA Nikita Zimov fazia um trabalho de campo ecológico com seus alunos no norte da Sibéria quando se deparou com um indício perturbador: ele observou que a terra congelada pode estar derretendo bem mais rápido que o esperado.
Zimov, tal como seu pai, Sergey Zimov, passou anos dirigindo uma estação de pesquisa que monitora as mudanças climáticas no extremo oriente russo que enfrenta um vertiginoso aquecimento. Quando os alunos examinaram o solo e coletaram amostras de solo em meio a colinas cobertas de musgos e florestas de pinheiros lariços perto de sua casa, a cerca de 320 quilômetros ao norte do Círculo Ártico, Nikita Zimov suspeitou que havia algo errado.
Sergey Zimov mede os níveis de permafrost com as netas perto da Estação de Ciências do Nordeste que fundou em Cherskiy, na Rússia, ao longo do rio Kolyma. A aproximadamente uma hora de distância fica o experimento científico de grande porte de Zimov, o Parque do Pleistoceno, que ele dirige com seu filho, Nikita Zimov. Os dois acreditam que, ao recriar o ecossistema da era do Pleistoceno, antes dominada por savanas e grandes mamíferos, poderão atrasar o derretimento do permafrost. FOTO DE KATIE ORLINSKY, NATIONAL GEOGRAPHIC
Em abril, ele enviou uma equipe munida com brocas pesadas para verificar. O solo foi perfurado poucos metros e foi encontrada uma lama espessa e lodosa. Zimov disse que era impossível. Cherskiy, seu vilarejo de 3 mil pessoas ao longo do rio Kolyma, é um dos pontos mais frios da Terra. Mesmo no fim da primavera, o solo abaixo da superfície deveria estar totalmente congelado.
Só que, naquele ano, não estava.
A cada inverno no Ártico, os primeiros poucos centímetros ou metros de solo e material rico em plantas congelam antes de derreter novamente no verão. Embaixo dessa camada ativa de solo que se estende por dezenas de metros, existe uma terra constantemente congelada chamada de permafrost, que, em alguns lugares, permaneceu congelada por milênios.
Contudo, em uma região onde as temperaturas podem chegar a 40 graus Celsius negativos, a família Zimov afirma que este ano uma precipitação extraordinariamente elevada agiu como um cobertor, aprisionando o excesso de calor no solo. Eles encontraram trechos com mais de 70 centímetros de profundidade, solos que normalmente congelam antes do Natal, que permaneceram úmidos e lodosos durante todo o inverno. Foi a primeira vez que se soube que o solo que isola o permafrost profundo do Ártico simplesmente não congelou no inverno.
Polígonos formados pelo congelamento e derretimento anuais de gelo em formato de cunha logo abaixo da superfície da Terra ficam visíveis de cima perto da Estação de Ciências do Nordeste em Cherskiy, na Rússia. FOTO DE KATIE ORLINSKY, NATIONAL GEOGRAPHIC
“Isso é realmente estarrecedor”, afirmou Max Holmes, cientista do Ártico do Centro de Pesquisas Woods Hole localizado em Massachusetts.
A descoberta nunca foi verificada ou publicada por outros pesquisadores e representa dados limitados de um local em um determinado ano. No entanto, aparentemente, as medidas feitas por outro cientista próximo e um cientista a um oceano de distância confirmam os achados dos Zimovs, alguns especialistas do Ártico estão ponderando sobre uma questão perturbadora: O degelo do permafrost pode começar décadas antes do que muitas pessoas esperam em algumas das regiões mais frias e mais ricas em carbono do Ártico, emitindo gases-estufa aprisionados que podem acelerar as mudanças climáticas causadas pelo homem?
Nikita Zimov faz bolhas de metano em um lago que é possível que esteja aumentando devido ao derretimento do solo. FOTO DE KATIE ORLINSKY, NATIONAL GEOGRAPHIC
Três dos últimos quatro anos foram registrados como os mais quentes da Terra, estando 2018 previsto para ser o quarto. E os polos estão efetivamente aquecendo bem mais rápido, com áreas a quase 500 quilômetros ao norte do Círculo Ártico na Noruega passando de 30 graus Celsius em julho deste ano. Se quantidades significativas de permafrost começarem a derreter cedo, isso só vai piorar as coisas.
“Isto é importante”, afirma Ted Schuur, especialista em permafrost da Universidade do Norte do Arizona. “No mundo do permafrost, este é um marco significativo de uma tendência perturbadora, como o carbono na atmosfera chegar a 400 partes por milhão”.
A grama Foxtail, as flores fireweed (Chamaenerion angustifolium) e flores de algodão são abundantes em Cherskiy, na Rússia, durante o verão. A cidade é totalmente construída sobre o permafrost. Os prédios são construídos sobre estacas de concreto com o encanamento acima do solo para levar em consideração mudanças na topografia conforme o permafrost derrete. FOTO DE KATIE ORLINSKY, NATIONAL GEOGRAPHIC
Extrapolando o limite
Quase um quarto da massa da Terra do hemisfério norte encontra-se acima do permafrost. Mais que o dobro do carbono encontrado na atmosfera está aprisionado neste solo e vegetação congelados.
Conforme a queima de combustíveis fósseis aquece a Terra, esse solo derrete, permitindo que micróbios consumam a matéria orgânica enterrada e emitam dióxido de carbono e o metano de vida mais curta, que é 25 vezes mais potente que um gás-estufa como o CO2.
As temperaturas do permafrost ao longo do Ártico vêm aumentando pelo menos desde os anos 1970 – tanto que o degelo localizado em pequena escala já está ocorrendo em diversos lugares. Entretanto, grande parte dessa terra congelada ainda está isolada por uma camada ativa de solo congelando e derretendo acima dela.
A grama da tundra mostra a umidade do derretimento perto de onde o rio Kolyma desagua no oceano Ártico. FOTO DE KATIE ORLINSKY, NATIONAL GEOGRAPHIC
Agora estão aparecendo sinais de que o congelamento anual pode mudar rapidamente.
A quase 20 quilômetros rio abaixo do local onde a família Zimov iniciou sua perfuração, Mathias Goeckede, do Instituto de Biogeoquímica Max Planck da Alemanha, passa, a cada verão, semanas atravessando calçadões em ruínas sobre o solo esponjoso da Sibéria. Ele monitora a troca de carbono entre a Terra e a atmosfera.
Medições do local estudado por ele indicam que a profundidade de neve lá quase dobrou em cinco anos. Quando o excesso de chuva cobre totalmente o solo, o calor abaixo da superfície não consegue se dissipar durante o inverno. Dados de uma perfuração do local de Goeckede parecem identificar esse fenômeno: em abril, as temperaturas a pouco mais de 30 centímetros abaixo do solo no local aumentaram pouco mais de 5 graus Celsius no mesmo período de cinco anos.
A Cratera Batagaika na cidade de Batagay, na Rússia, é conhecida como a “cratera do inferno” ou o “portal para o submundo.” Com mais de 90 metros de profundidade e mais de 800 metros de comprimento, a depressão é uma das maiores do mundo. Cientistas acreditam que ela começou a se formar nos anos 1960, quando o permafrost sob a área começou a derreter após o desmatamento das florestas vizinhas. FOTO DE KATIE ORLINSKY, NATIONAL GEOGRAPHIC
“Este é apenas um local e são apenas cinco anos, então isso deve ser considerado somente um estudo de caso”, conta Goeckede. “Mas se você pressupor que é uma tendência ou que possa continuar assim, então é alarmante”.
A milhares de quilômetros de distância, Vladimir Romanovsky encontrou algo parecido. Romanovsky, especialista em permafrost da Universidade do Alasca, Fairbanks, administra um dos locais mais extensos de monitoramento de permafrost da América do Norte, com registros detalhados datando de 25 anos e, em alguns casos, mais tempo ainda.
“Em todos os anos anteriores a 2014, o congelamento completo da camada ativa ocorria em meados de janeiro”, explicou ele. “A partir de 2014, a data de congelamento mudou para o fim de fevereiro e até março.”
Contudo, neste inverno, Fairbanks também passou por nevascas extremamente intensas e pela primeira vez foi registrada que a camada ativa em dois dos locais examinados por Romanovsky nem sequer congelaram.
“Esse é um limiar muito importante”, acrescentou ele.
O permafrost pode ser visto ao longo do perímetro da cratera Batagaika. FOTO DE KATIE ORLINSKY, NATIONAL GEOGRAPHIC
Motivos para o ceticismo
Claro, o tempo no Ártico é notoriamente variável. Alguns anos de nevascas em algumas regiões podem rapidamente abrir caminho para um longo período de anos frios e secos.
Alguns cientistas também estão divididos sobre o trabalho dos Zimovs, que não é tão rigoroso quanto muitos pesquisadores ocidentais estão acostumados. Os achados dos Zimovs não possuem dados de temperatura, nem podem indicar registros de longo prazo. Muitos dos locais que eles examinaram também foram perturbados por atividade humana ou animais não nativos, o que deixa o solo mais suscetível ao aquecimento.
“Fazer buracos em diversos lugares dificilmente é rigor científico”, conta Matt Sturm, especialista em neve da Universidade do Alasca, Fairbanks.
Charles Koven, especialista em permafrost do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, vê motivos para o ceticismo e mais pesquisa. “Não sei o que pensar sem saber mais sobre o histórico desses lugares”, diz ele. “Por outro lado, não queremos ignorar sinais de aviso, se existirem.”
O cientista Sergey Zimov contempla o oceano Ártico em uma estação de pesquisa a pouco mais de 100 quilômetros de sua casa em Cherskiy, na Rússia. Zimov usa a haste metálica em sua mão para testar rapidamente a profundidade do solo congelado. FOTO DE KATIE ORLINSKY, NATIONAL GEOGRAPHIC
Além disso, comparado a Romanovsky e Goeckede, que são pesquisadores comedidos e metódicos, Sergey Zimov é quase um filósofo catastrófico, propenso a previsões pessimistas e grandes gestos. Ele e seu filho são responsáveis pelo Parque do Pleistoceno, uma região no território deles da Sibéria com grandes mamíferos importados, de bisões a iaques e cavalos. Faz parte de um experimento que imita o ecossistema de estepes do mamute que desapareceu há 12 mil anos com a finalidade de observar a resposta do permafrost.
Ao mesmo tempo, Sergey Zimov também foi um dos primeiros cientistas do mundo a demonstrar que a Sibéria contém reservas enormes do permafrost especialmente rico em carbono. E ele trabalha em Cherskiy há mais de 40 anos, sendo altamente respeitado por muitos pesquisadores.
“Ele conhece esse ambiente tão bem que raramente erra,” destaca Katey Walter Anthony, professor associado da Universidade do Alasca, Fairbanks, que estuda metano nos lagos do Ártico. “Se ele acreditar que um processo é importante, é porque tem valor”.
Frost lines the walls of an ice cellar in Cherskiy, Russia. Residents have dug ice cellars, or freezers, into the permafrost for thousands of years. Recently, some people have observed cellars flooding due to permafrost thaw. FOTO DE KATIE ORLINSKY, NATIONAL GEOGRAPHIC
Romanovsky também conhece os Zimovs e afirma que, embora desejasse que o trabalho deles tivesse dados de temperatura, verificar a profundidade de congelamento é uma boa abordagem. “Ainda é um método convincente”, explica Romanovsky. “Para mim, só quer dizer que não é 100 por cento.”
Também não está clara a extensão geográfica representada pelos achados de Romanovsky e dos Zimovs. Trata-se de uma pequena amostra.
Contudo, para Romanovsky seus locais de estudos foram escolhidos por representarem razoavelmente o Alasca central.
“Então presumimos que o congelamento não ocorreu neste inverno em áreas grandes como o interior do Alasca”, diz ele.
Até mesmo cientistas incomodados com a limitação de dados afirmam que a possibilidade de algo tão fundamental mudar tão rapidamente os faz parar para refletir.
“É preocupante”, conta Sue Natali, especialista em permafrost, também do Centro Woods Hole, que observou uma camada ativa não voltar a congelar recentemente durante uma viagem de pesquisa à região Yukon do Alasca. “Quando notamos coisas acontecendo que nunca ocorreram durante a vida dos cientistas que as estudam, isso é inquietante”.
A maior parte do permafrost permanece congelada. Mas outras partes, nas regiões do norte da Sibéria e vários outros pontos do Ártico, estão sob risco de derreter mais rápido do que o esperado, ameaçando liberar grandes quantidades de dióxido de carbono e metano. FOTO DE KATIE ORLINSKY, NATIONAL GEOGRAPHIC
Um ciclo em aceleração
Há muito em jogo. Se a camada ativa de uma região parar de congelar constantemente, as consequências podem ser imediatas. Uma vez descongelados, os micróbios do solo presentes na camada ativa são capazes de decompor a matéria orgânica e liberar gases-estufa durante o ano todo, não somente no verão, o que expõe o permafrost que está por baixo a mais calor, de forma que essa camada também pode começar a derreter e liberar gases.
Em solos ricos em gelo, como os da Sibéria, o chão pode afundar, o que pode causar desmoronamento de estradas e construções e fazer os porões frigoríficos de gelo natural entrarem em colapso. Tais depressões também alteram a paisagem formando canais e vales onde a neve pode acumular, deixando o solo mais quente no inverno. Esses canais podem se encher com chuva e neve derretida, formando novos pântanos e lagos de tundras, ambos emitem grandes quantidades de metano.
E a movimentação de toda essa água, acima e abaixo do solo, pode transportar grandes quantidades de calor, acelerando o degelo. O colapso do permafrost pode começar a se autoalimentar, liberando mais gases-estufa, que por sua vez, aumenta o aquecimento.
A Cratera Batagaika é um dos poucos lugares onde é possível ver uma parede de permafrost — e se está derretendo — de perto. Os cientistas estudam na área indícios da mudança climática no Ártico e como ela pode afetar o resto do planeta. FOTO DE KATIE ORLINSKY, NATIONAL GEOGRAPHIC
Ninguém espera que o permafrost emita todo o seu carbono armazenado de uma só vez. A maioria dos modelos sugere que apenas de 10 a 20 por cento no máximo escapariam inclusive em cenários de altas emissões humanas.
Porém, mais de uma dezena de cientistas do clima do Ártico contatados pela National Geographic concordam que os dados da camada ativa deste ano ressaltam as limitações dos modelos do clima global. Os sofisticados programas de computador que preveem cenários climáticos futuros geralmente usados por tomadores de decisões de governos simplesmente não conseguem captar alterações importantes no permafrost.
“Ao fazer essas simulações, há uma série de processos que os modelos não incluem – processos que multiplicam a transferência de calor”, afirma Daniel Fortier, professor associado de geografia da Universidade de Montreal. “Creio que é possível afirmar que os acontecimentos estão mais rápidos do que esperávamos.”
Por exemplo, cientistas sabem há muito tempo que a perda de bancos de gelo e as temperaturas mais altas, provocam, com o tempo, o aumento de neve no Ártico, algo que os modelos são capazes de absorver. Contudo, essas mesmas simulações são muito menos confiáveis na tentativa de monitorar mudanças progressivas nos tipos de solo, vegetação de superfície, derretimento do gelo e fluxo de água proveniente do aumento das temperaturas e de toda essa neve, todos esses fatores podem acelerar consideravelmente o derretimento do permafrost.
“Os modelos não conseguem processar essas mudanças ambientais e todos os processos que podem levar a uma mudança rápida”, afirma David Lawrence, criador de modelos de permafrost do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica de Boulder. “E vai demorar muito tempo antes que consigam.”
Quando algumas mudanças forem detectadas, uma transição expressiva poderá já estar acontecendo, conta ele. Isso significa que a população e os políticos podem não perceber os riscos reais.
“A maioria dos modelos prevê grandes emissões de carbono só depois de 2100”, afirma Walter Anthony. Esse pode ser o caso. Mas também é possível, afirma, que “isso possa acontecer, na realidade, durante a vida dos meus filhos, ou a minha”.
Fotos – Katie Orlinsky
Fonte – Craig Welch, National Geographic de 28 de agosto de 2018
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