Por Ellen Nemitz · ECO - 18 de dezembro de 2024 - Câmara ressuscitou “jabutis” da…
Pensar antes, produzir depois
Foto: Patrick Savalle/ Flickr Creative Commons
Um dos criadores do conceito da economia do berço ao berço, o químico alemão Michael Braungart, acredita que reduzir o impacto ambiental é muito pouco perto do que podemos fazer. A inovação e o design na concepção dos produtos e serviços que criamos podem gerar impacto positivos e esse modelo tem se conectado com o estilo de vida das novas gerações. “Gerar resíduos faz de você um idiota, não se pode ter orgulho disso”, comenta o bem-humorado professor de Engenharia Química e de Química da Escola de Negócios Erasmus, em Roterdã, Holanda, uma das mais respeitadas da Europa.
Acompanhado de Léa Gejer, arquiteta e representante da Cradle to Cradle® no Brasil, Braungart concedeu esta entrevista à revista Página22 em visita ao Brasil, para abertura do Festival Green Nation, que reuniu entre os dias 23 e 27 de novembro, no Rio de Janeiro, uma intensa programação sobre sustentabilidade por meio de filmes, instalações interativas, palestras, oficinas, competição de multimídias e outras atividades.
O que é economia circular, nas suas palavras?
A economia circular é um bom começo. Nós utilizamos as coisas, depois as reutilizamos em produtos e com ela fabricamos novos produtos. Mas apenas isso não é suficiente. A economia circular pode ser muito chata, pois é um pensamento linear em círculos. Primeiramente, é preciso refletir sobre o conceito adequado. Por exemplo, quando as garrafas PET são fabricadas não se pensa no seu destino de reciclagem, em fabricar novas garrafas a partir delas. Esse raciocínio precisa ser feito no começo, em vez de ser feito no final. Nesse sentido, a economia circular implica em custos extras.
É por isso que prefiro falar em economia berço a berço, que significa que estamos pensando em tudo o que é criado para ser consumido, como alimentos, detergentes, solas de sapato, cadernos, precisa ser criado e pensado para entrar nos sistemas biológicos. E até mesmo em serviços, como máquina de lavar, computador, televisão, precisa ser criado de modo a adentrar os sistemas técnicos, para que não haja desperdício e tudo se torne nutriente.
E quando se entende o sistema circular como nutriente para a biosfera e a tecnosfera, isso pode ser feito. Devemos querer aprender, transformar, e não apenas reciclar. Adicionar mais inteligência, evoluir. Usar informações primitivas para fabricar coisas mais bonitas e não a mesma coisa o tempo todo. Isso seria muito chato!
Qual é o papel do Brasil na economia circular? Aqui existe um grande poder de energia renovável, muitos recursos naturais. Como o senhor vê nosso País nesse cenário?
O Brasil precisar usar mais energia solar que hídrica, porque as hidrelétricas provocam efeitos socioambientais muito graves. Hoje, já sabemos que o Brasil pode fabricar energia solar a menos de 10 centavos o quilowatt/hora. E isso faz muito sentido.
Hoje, não é preciso mais comprar coletores solares para a sua casa. Você compra apenas o serviço de 20 anos de uso do coletor solar. Com isso, é possível usar materiais muito melhores e um serviço muito mais barato. A Austrália está desativando termoelétricas a carvão, pois a energia solar é mais barata. O sol não manda conta. Obtemos energia gratuita.
O Brasil, com a excelente concepção e o vigor daqui, a animação, a criatividade e a abundância de luz solar, certamente é um lugar excelente para o início de uma nova mentalidade que celebre a vida, ao invés de sermos apenas “menos maus”. Já somos menos maus com tanta gente. Achamos que estamos fazendo o bem para o ambiente se destruirmos um pouco menos. Mas você não está protegendo seu filho ao bater nele cinco em vez de dez vezes.
É por isso que falamos em qualidade, inovação e beleza. Nós podemos usar toda essa máquina ambiental inovadora do Brasil. E isso cria empregos infinitos, porque a fabricação dos produtos berço-a-berço custa 20% menos do que os tradicionais, já que a inteligência é aplicada no início, e não no fim da cadeia.
Léa Gejer: No Brasil, a gente tem várias indústrias, tem toda a cadeia. Por exemplo, a indústria têxtil tem a cadeia inteira aqui no Brasil. Então não é como nos EUA, em que um pedaço vem da China, outro da Europa e eles juntam tudo num lugar e fazem a roupa que depois vai para não sei aonde… Aqui a gente tem várias cadeias numa indústria que é fechada. Isso é um problema, mas ao mesmo tempo a gente tem controle sobre várias etapas dessas cadeias. Na construção civil também. Tem muita matéria-prima, então a gente extrai e a gente tem toda a condição de conseguir fechar o ciclo internamente.
Como o senhor acha que o Acordo de Paris pode impulsionar a economia circular?
O Acordo de Paris serve como base, pois foi a primeira vez na qual todos os países do mundo se uniram para conversar sobre este grave problema. Sendo sincero, o problema da energia só será resolvido com o ingresso de 20 vezes mais fontes de energia nesse planeta do que jamais foi feito.
A questão energética do que vimos em Paris me deixa otimista, mas precisamos aprender a recuperar o carbono da atmosfera. Nós podemos usar dióxido de carbono como matéria-prima. Mas é preciso haver uma estratégia de recuperação dos nutrientes, como potássio, fósforo. E isso só em termos orgânicos.
Eu trabalhei na China por muito tempo e lá, por exemplo, é diferente. Quando você é convidado para jantar, espera-se que fique até usar o banheiro, porque não é cortês ir embora e “carregar os nutrientes” consigo. Afinal, você foi convidado para jantar, e não para carregar nutrientes.
Ou seja, Paris foi um bom começo, mas o começo real no tratamento de todas essas questões foi na Eco92, aqui neste país [Brasil]. Porque vocês foram pioneiros e chegou a hora de usar isso como mecanismo de inovação. Por isso, é preciso trabalhar com o mercado, as pessoas diretamente, governos, para que as mudanças aconteçam.
A Europa está usando 21% do solo de agricultura na plantação de milho. Isso não faz sentido. Ao mesmo tempo, a Europa está importando grãos cultivados em terras do Brasil só para alimentação animal. Isso não faz sentido.
A União Europeia e a China adotaram a economia circular como orientação para política econômica. Quais são os passos que os países latino-americanos teriam de dar para caminharem na mesma direção?
O primeiro a se fazer é apoiar faculdades de design e de arquitetura para que haja mais programas educacionais e de capacitação para os alunos. Esse é o primeiro passo. O segundo é ter metas claras. Por exemplo, “em 2020 todo o papel deve ser compostável”. Aí, sim, seria possível fazer a diferença. Ou, “toda a madeira que usamos é tratada com produtos que podem ser reaproveitados como combustível”. A economia circular na Europa não se resume apenas a isso, trata-se de reinventar-se, de renovar o conceito. “Máquinas de lavar, televisão, painéis solares são serviços e não são mais vendidos [como produtos], vendemos apenas o seu uso”. Então, podemos facilmente começar por um programa industrial onde desde o início tudo se recupere.
Léa Gejer: Também pode ser interessante para a América Latina pensar que um produto tem vários materiais que têm um valor. Por exemplo, um edifício. Um edifício é um banco de materiais. Se você entender que cada material naquele edifício, ou um celular, tem valor e que aquilo pode voltar para você, eu acho que pode ser interessante para economias em desenvolvimento. É uma riqueza que a gente não vê, que a gente joga fora, mas que pode ser resgatado, por meio do design e com qualidade, em vez de ir sempre diminuindo a qualidade. Essa é a ideia de valorizar os materiais.
Falando sobre países em desenvolvimento, a economia circular só ocorre quando em um cenário de decrescimento ou ausência de crescimento econômico, ou ela pode ocorrer também com crescimento econômico?
Basicamente, funciona em todas as áreas de todos os países, porque o que temos por aí é muito primitivo. Apenas nove de 41 elementos dos celulares são reciclados, e são elementos raros como índio, gálio que não são recuperados.
Estamos ainda no começo. Um comprovante de estacionamento ou cupom de supermercado faz você absorver 25 produtos químicos na corrente sanguínea, até porque aquilo não foi fabricado para o contato com a pele. Podemos começar com coisas simples. Até mesmo o papel higiênico não é fabricado para sistemas biológicos. Com 1 quilo de papel higiênico contamina-se até 8 milhões de litros de água porque as substâncias químicas do papel não foram concebidas para a economia circular.
Os designers podem criar coisas totalmente novas que sejam muito melhores desde o início. Existem tantos designers famosos… Depende de nós fazer a diferença agora, senão não teremos força [depois] porque não haverá mais mercado.
Reutilizarmos os mesmos materiais em vez de extraí-los impactaria o PIB?
Ao contrário! Voltando aos materiais, são apenas 2% de toda a cadeia de valor. Até este celular, todos os materiais internos custam menos de dois dólares. São os componentes, não apenas o material. O valor verdadeiro é poder reutilizar componentes, conceber de modo a reutilizar os materiais como componentes. Você conecta componentes diferentes e aí lucra de verdade. Voltar à extração de matéria-prima não faz sentido, porque o custo ambiental da maioria dessas operações de mineração é muito maior para a sociedade do que qualquer lucro obtido.
Os países mais pobres do mundo são os que mais usam matéria-prima, porque isso leva à corrupção e a todo tipo de relacionamento injusto. Foca-se na extração de matéria-prima em vez do apoio à sociedade.
Considerando as desastrosas operações de mineradoras nos três últimos anos no Brasil, isso equivale a 20 anos da renda líquida desse País em termos de danos para o futuro, de tão enorme que é. Talvez seja melhor pensar: “Vamos parar a mineração” e as pessoas começariam a pensar no uso diferente de materiais.
Léa Gejer: A economia circular pode trazer outras formas de negócio. Então, por exemplo, empresas que fazem reformas de objetos, que remanufaturam e estão dentro daqueles ciclos, são ciclos internos. Você tem novas formas de fazer negócio, de desenvolver a economia local com o que você já tem.
Em uma economia em crescimento, a proposta do berço-a-berço pode interromper o crescimento da extração de materiais e a consequente poluição. Isso não estaria apenas desacelerando a uma aproximação dos limites biofísicos do planeta?
Para começar, os humanos são o único limite deste planeta. Se vivêssemos apenas da caça, o limite do planeta seria de cinco milhões de pessoas. Quando aprendemos a agricultura – e podemos aprender muito com os Ianomâmi, que faziam agricultura na floresta tropical –, o limite desse planeta passou para 500 milhões de pessoas.
Com a agricultura industrializada, que é o que fazemos, o limite é de cinco bilhões de pessoas. Ultrapassamos esse limite e estamos destruindo este planeta de modo sistemático.
Mas se tivéssemos uma agricultura baseada em carbono e usássemos nossos nutrientes, poderíamos ser muito mais produtivos e alimentar 20 bilhões de pessoas com facilidade. Nós somos o único limite. Se fizermos isso poderemos ter um planeta cinco vezes maior do que temos agora, já que podemos torná-lo mais produtivo.
Veja o exemplo da Holanda. A agricultura baseada em carbono é, depois dos Estados Unidos, o segundo maior exportador de produtos de agricultura, isso com 2% do tamanho da Brasil. Eles são o segundo porque a agricultura baseada no carbono pode ser muito mais produtiva e empregar muito mais pessoas.
A ideia da economia circular depende do uso quase exclusivo de energia renovável. Em um cenário de crescente demanda por energia, é realista usar apenas energia renovável o tempo todo? Se for o caso, o uso exclusivo da energia solar, por exemplo, não implica também em impactos ecológicos?
Os conectores solares podem ser muito produtivos e a energia não é nada limitada. Na verdade, é até o contrário, nós precisaremos de uma sobrecarga de energia renovável porque também precisamos de energia quando o vento não é forte em algumas áreas.
Nós poderemos usar essa sobrecarga de energia renovável para extrair CO2 da atmosfera e usar água como fonte de hidrogênio e fabricar hidrocarbonos e produtos químicos para todo tipo de mercado, como plásticos.
Podemos usar a atmosfera como fonte ao fazermos bandas de energia. Temos um projeto na Europa onde usamos a sobrecarga da energia para fazer tijolos com pias. Usamos metais, como o magnésio, que oxidam no inverno para a calefação das casas. Podemos pegar óxido de magnésio ou cálcio e deles obter magnésio ou cálcio novamente. Não será mais preciso isolar as casas porque poderemos usar 300 tijolos para a calefação.
Podemos fazer o mesmo com construções de arrefecimento, podemos usar o sol para arrefecer construções. Usar ar condicionado na eletricidade será uma idiotice, porque será possível usar o calor do sol para arrefecer construções. Por conta das bandas de energia, a energia em si não é um problema, mas o lado material é muito mais crítico.
E quanto aos impactos ecológicos da energia solar, por exemplo?
O impacto da energia solar depende do que você está fazendo. Se você faz células solares que podem ser reutilizadas, elas podem ser concebidas desde o início com um impacto melhor para todos.
Na Europa, nós trabalhamos na concepção de operações de mineração que são concebidas desde o início para serem a favor dos habitantes. Planeja-se a pegada de carbono que será deixada. Fizemos isso na Bélgica com 34 operações mineradoras. E posso garantir que hoje em dia eles são uns dos biótipos mais ricos e diversos que se pode imaginar. Antes, havia um deserto deixado pela agricultura. Agora, existe uma rica terra que abarca todas as espécies. Vimos pássaros raros que haviam sumido há décadas.
Podemos fazer telhados verdes na cobertura dos prédios. Fizemos isso em Detroit com quatro fabricantes de veículos e elas economizam 30 milhões de dólares em proteção contra água de chuvas. Isso permite o retorno de várias espécies de pássaros devido ao estímulo à flora. Com isso, estamos ajudando esses pássaros a fugirem dos predadores também. Eles não estão mais ameaçados por estarem protegidos por suspensões de flora.
É lucrativo para todos nós. É um tripé de sustentabilidade invertido, que é bom para a economia, a sociedade e o meio ambiente.
E fazemos várias ações pequenas também. Nesse momento estamos trabalhando num prédio em Barcelona que está criando borboletas no saguão. Toda sexta-feira elas são soltas para o ambiente. As crianças veem e dizem: “Ah, então é aqui que o papai e a mamãe trabalham”!
Isso pode mudar o equilíbrio biológico de Barcelona fazendo com que as borboletas sejam uma população natural e estável, bastando defendê-las toda semana, deixando-as voar pela cidade de Barcelona. Nós podemos ser bons para as outras espécies. Não precisamos ser menos maus.
Na sua opinião, o que impede o maior crescimento da economia circular? Será o comportamento do consumidor, a cultura do “descartável”?
Primeiramente, trata-se de uma geração jovem de excessos. Esses jovens querem ter orgulho do que fazem. Só que gerar resíduos faz de você um idiota, não se pode ter orgulho disso. A vida é assim. Temos essa geração de jovens onde o reconhecimento na internet e no Facebook é mais importante que dinheiro. É isso o que impulsiona a juventude de hoje. Trata-se de autoestima. As pessoas querem ter orgulho do que fazem. É uma inovação verdadeira.
Mas não é maquiagem verde?
Ao contrário. Não se trata de maquiagem verde pela transparência: dá para ver e medir. Graças à internet, é possível encontrar provas imediatas. Então não tem como fazer maquiagem verde.
O modelo tradicional é perigoso porque a emissão de relatórios de sustentabilidade nos Estados Unidos custa US$ 10 bilhões por ano. Tem várias empresas vivendo disso, além de consultoria e arquitetura. Elas querem continuar fazendo negócio. Na Europa, são 7 bilhões em custos para as empresas.
Com a economia circular, você vende apenas o uso. Não há interesses escusos porque o produto continua seu. Em vez de vender o produto “janela”, você está vendendo o seguro “olhar pela janela”, que permanece seu por 25 anos. Por que você teria interesse escuso se continua sendo seu? Você retém o produto. Quando você vende algo e coloca algo tóxico nele, é mais lucrativo trapacear o consumidor e fazer maquiagem verde.
O que nós produzimos gera um lucro incrível por conta do que o impulsiona. Por exemplo, ao fabricarmos tecidos para esta cadeira. O material é tão tóxico… Isso é uma burrice. Se escolhêssemos produtos químicos reutilizáveis, o tecido ficaria 20% mais barato. Justamente por não ser preciso tratar a saúde. Você filtra pelo início, não no final, na gestão de resíduos.
Léa Gejer: Claro que é muito importante também não pensar apenas no consumo ou pós-consumo, mas sim antes do consumo. O mais importante é a questão econômica e ambiental, não ser é pautada na gestão resíduos, mas sim no desenho. Essa é a base desse pensamento. Não adianta só você reciclar e reciclar e perder a qualidade. Tem de desenhar sempre pensando no que vem depois.
Como o discurso da economia circular poderia ser compatibilizado com a Segunda Lei da Termodinâmica? A economia circular refuta a tese central da obra do [do economista ecológico] Nicholas Georgescu-Roegen [em que a entropia é acelerada pelas atividades humanas]?
Se utilizarmos alumínio na economia circular, ele demanda 95% menos energia. Eliminaríamos 95% do que precisamos na economia circular. Esses 5% podem ser facilmente obtidos com bancos de energia externa.
O alumínio pode ser usado praticamente de modo infinito, economizando-se 95% em comparação a operações em mineradoras. Mas ainda precisa-se de 5% da energia para reprocessamento ou sistemas técnicos. Mas esses 5% podem muito bem ser oriundos de energia renovável porque temos bancos para isso. A economia circular transformará a energia em renovável muito mais rápido, sob um consumo no mundo muito menor com o uso de recursos renováveis.
É por isso que não pode ser apenas economia circular. Senão, você está provocando uma necessidade ainda maior de materiais para ter coisas mais eficientes. É por isso que precisamos de eficiência em vez de eficácia. Precisamos ver o que é certo, em vez de se fazer sempre a mesma coisa.
(Colaboraram: Andrei Cechin, Amália Safatle, Ernesto Nunes, José Eli da Veiga, Ricardo Abramovay)
Fonte – Fernanda Macedo / Tradução Carlos Abelheira, Página 22 de 23 de dezembro de 2016
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