Por Ana Flávia Pilar - O Globo - 11 de novembro de 2024 - Com modelo…
Pesquisadores emitem Nota Crítica sobre o PL 495 de 2017 e a proposta dos ‘mercados de água’
O grupo de pesquisa Direito Ambiental Crítico (DAC) da Universidade de Caxias do Sul (UCS) repudia o Projeto de Lei 495 de 2017 que, sob pretexto de enfrentamento da crise hídrica, pretende introduzir os chamados “mercados de água” como panaceia para realizar a alocação de quotas de água entre empresários sedentos de lucro fácil.
O PL 495/2017 pretende alterar a Lei nº 9.433, de 8 de janeiro de 1997, para introduzir os “mercados de água” como instrumento destinado a “priorizar o uso múltiplo e a alocação mais eficiente dos recursos hídricos, bem como para criar os mercados de água.” O objetivo de uma nova lei federal de recursos hídricos seria de ganhar “um instrumento fundamental para a gestão de crises hídricas e para a redução dos conflitos pelo uso de recursos hídricos”.
A alocação mais eficiente de recursos e a solução de crises hídricas são objetivos políticos legítimos e os “mecanismos de mercado” podem ser capazes de alocar recursos de maneira eficiente, dependendo das condições e dos contextos. Não obstante, imaginar que “mercados de água”, assim como indefinidos no PL 495/2017, sejam capazes de conduzir a uma gestão eficiente, é um wishfull thinking que não se coaduna com a dura realidade brasileira.
As crises hídricas não são simplesmente um produto da vontade de São Pedro, mas resultados de um processo histórico de mercantilização dos recursos hídricos; isto é, de uma gestão pautada pelos interesses de poucos: o autorreferido “mercado”. A SABESP evidencia o triunfo do “mercado”, quando passa a ser cotada na BOVESPA e na bolsa de valores de Nova York. Isso não impediu que, no ano de 2015, tenha se dado a maior crise de abastecimento hídrico da cidade de São Paulo. Crise resolvida sem “racionamento”, já que o Governador do Estado proibiu o uso desta palavra para designar o efeito principal de sua incúria. Aliás, só dependia de o Governador fazer aprovar, em seu Estado, se necessário e sem criar disposições incompatíveis com a legislação federal, as medidas legais previstas pela Lei 9.433/1997 para o racionamento. Isto é:
Do regime de racionamento do uso dos recursos hídricos
Art. 21. Nos casos de insuficiência de água para atendimento da demanda outorgada em corpo hídrico de domínio da União, inclusive para diluição de efluentes líquidos em concentrações aceitáveis, e para dirimir ou prevenir conflitos entre usuários de recursos hídricos, o Poder Executivo poderá adotar as seguintes medidas:
I – declarar, em regime de racionamento, o corpo hídrico ou todos os corpos hídricos formadores de uma bacia hidrográfica;
II – assegurar o uso prioritário dos recursos hídricos para consumo humano e dessedentação de animais;
III – assegurar os usos prioritários que independem de outorga, previstos no art. 2o;
IV – restringir a captação de recursos hídricos e o lançamento de efluentes no corpo hídrico;
V – atuar, supletivamente e quando necessário, em apoio aos Estados na implementação de ações de sua competência.
Parágrafo único. As medidas previstas neste artigo serão implementadas pelos órgãos e entidades federal e estaduais investidos do poder de outorga do direito de uso de recursos hídricos, em conformidade com o domínio dos respectivos.”
Observe-se que no Estado de SP, as prioridades não consistiam em atender as necessidades da população; apesar de discursos em contrário.
A água é recurso essencial à vida e condição indispensável para a garantia de direitos fundamentais: à vida, à dignidade, à saúde, ao meio ambiente sadio. Sem a universalização do acesso à água, impossível conceber uma sociedade humana, justa, solidária e sustentável. Mercantilizá-la, sobretudo em um país marcado por desigualdades socioeconômicas extremas, resulta no esvaziamento de preceitos constitucionais e ignora as garantias de abastecimento, em primeiro lugar, de água potável.
O direito à água, em quantidade e qualidade suficientes, já aprovado pela Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas, não é objeto de preocupação do Projeto de Lei. Tampouco se menciona a aprovação do fornecimento diário da quantidade de 40 litros de água gratuita, por pessoa, a ser distribuída nos lugares de consumo, para atender as necessidades mínimas vitais da população. As metas estabelecidas pela Agenda 21 e outros documentos internacionais só serão realizadas se houverem garantias correspondentes de que os poderes públicos irão respeitá-las e implementá-las.
O PL 495/2017, contudo, apenas torna manifesto o interesse pela apropriação dos direitos de uso da água, já distribuídos a usuários pela via de outorgas. E mais: afirma que os direitos de uso já outorgados poderão ser negociados independentemente de sua finalidade inicial; significa dizer, por exemplo, que o titular (privado) de direitos de uso (públicos) relativos à captação, ao tratamento e à distribuição da água potável, poderá revender seus direitos a um usuário com outras finalidades.
É fundamental questionar: como fará a administração concedente para fazer respeitar as obrigações de usuários que gozariam do privilégio de alterar as finalidades para as quais teriam recebido os direitos de uso? No sistema atual, previsto na Lei 9.433/1997, a autoridade concedente é competente para cobrar pelo uso dos recursos hídricos e pode revogar a outorga. Com a proposta do PL 405, as garantias existentes desaparecem.
Não se trata, portanto, de negar as virtudes do mercado, e sim de recusar condicionar a sobrevivência das pessoas, a qualidade de vida e a qualidade ambiental ao dogma da onipotência dos mecanismos de mercado na solução dos problemas humanos. Nos últimos 40 anos, no Brasil, nenhuma decisão política ou econômica escapou da soberania e da “mão invisível” do mercado. Nenhuma política pública decretou que o mercado não seria o palco de sua realização. Nesse contexto, a política pública de recursos hídricos deixou de implementar as iniciativas e obrigações previstas pela lei e piorou a situação de milhões de pessoas dependentes do seu cumprimento.
Por que será que a Lei n. 9.433/1997, chamada Política Nacional de Recursos Hídricos, não foi a base de políticas públicas para implementar as inúmeras soluções políticas (e ambientalmente corretas) que ela preconizava?
Por que perdemos 21 anos deixando de implementar os pilares de gestão das águas evocados pelo Engº Agrônomo, então Secretário Nacional de Recursos Hídricos (no Ministério do Meio Ambiente), Paulo Romano, quando evocava as bases da nova lei? A “base financeira” da Política Nacional de Recursos Hídricos deveria ser compartilhada:
“O financiamento compartilhado é básico para o sucesso da proposta porque a cobrança pela utilização dos recursos hídricos gera recursos e induz o usuário a um comportamento mais responsável em relação ao valor da água. Além de justos, os princípios de Poluidor/Pagador, Usuário/Pagador ou Poluidor/Usuário/Pagador aumentam o estímulo para o desenvolvimento de metodologias adequadas e de novas tecnologias em busca da qualidade total.”
Por que o PL 495 não incluiu a base segundo a qual “a meta é buscar o equilíbrio entre os interesses ligados à proteção das águas, como os voltados para o seu aproveitamento econômico e social, considerando como prioridade o uso para abastecimento público”, que constitui outro pilar da Lei 9.433/1997?
O Art. 12, § 3o, da Lei 9.433/1997, fixa condições que haverão de desaparecer, sob a tutela dos “mercados de água”: “a cessão total ou parcial, a terceiros, do direito de uso de recursos hídricos, somente será admissível quando: I – a vazão outorgada estiver sendo efetivamente utilizada há pelo menos três anos; e II – não ocasionar restrições de uso de recursos hídricos para os demais outorgados.”
Diante do exposto, é fundamental entender que o PL 495/2017 está prestes a se juntar às dezenas de textos aprovados pelo Congresso Nacional e, com eles, a fomentar o gigantesco retrocesso idealizado nos últimos dois anos.
Caxias do Sul, em 14/07/2018
Christian Guy Caubet, Prof. Titular da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
Maria Lúcia Brzezinski, Prof. Adjunta da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (UNILA)
Clóvis Eduardo Malinverni da Silveira, Prof. Adjunto da Universidade de Caxias do Sul (UCS)
Airton Guilherme Berger Filho, Prof. Adjunto da Universidade de Caxias do Sul (UCS)
Sergio Francisco Graziano Sobrinho, Prof. Adjunto da Universidade de Caxias do Sul (UCS)
Fonte – EcoDebate de 23 de julho de 2018
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