Por Elaine Patricia Cruz – Repórter da Agência Brasil - 18/12/2024 - Para cientista brasileiro,…
Por que é uma má notícia que a indústria se aproveite do ‘boom’ vegano?
Produtos veganos em um supermercado. JOSEFINE S.
O aumento dos consumidores verdes enche os supermercados de produtos ‘veganos’, mas prejudiciais à saúde
Ninguém dotado de olhos pode negar que nos últimos três anos vivemos um tremendo boom do vegetarianismo. É claro que o interesse pela alimentação vegetariana experimentou um aumento significativo e, embora possamos ver isso em muitas frentes, hoje quero abordar o aumento da presença de produtos rotulados como “veganos” nas lojas de alimentos.
O fato de um produto ter o selo “vegano” apenas alude à origem dos ingredientes que o compõem. Não diz absolutamente nada sobre sua salubridade
Nos supermercados de bairro, as bebidas vegetais já ocupam quase o mesmo espaço que o leite de vaca nas prateleiras. Na geladeira de laticínios há cada vez mais sabores de iogurtes de soja e há lugar para vários itens de sobremesas vegetais à base de aveia, arroz ou coco. Na área de produtos pré-cozidos encontramos vários tipos de hambúrgueres e salsichas vegetais, seitan, tofu, falafel e homus de vários tipos. Nos corredores dos congelados há croquetes veganos, lasanha e sorvetes de vários tipos 100% vegetais. Ao lado das massas, está a soja texturizada. Existe sushi vegano e até veganese (maionese vegana). E provavelmente, em breve, haverá muitos outros produtos que farão as delícias de parte do grupo que os consome com prazer.
Tudo isso, aliás, convenientemente rotulado como vegano, assim como produtos que já são veganos em si, como o gazpacho ou alguns vegetais processados, como o tomate refogado. Também são rotulados como tais alguns itens de bolos e pães.
Se as redes de supermercados fazem esse esforço para expandir seu sortimento de produtos voltados para os interessados em alimentação vegetariana e em adaptar sua rotulagem é porque detectaram uma demanda e um nicho de mercado suficientemente grande para que isso seja lucrativo tanto economicamente como no que diz respeito à imagem.
Mas não são apenas os supermercados. Marcas como Campofrío, o imperio da carne espanhola que em 2008 ridicularizava os vegetarianos em sua publicidade, lançou em 2017 uma linha de linguiças vegetais e também vende salsichas de soja. Essa onda já havia sido aproveitada por outra marca bem conhecida de produtos de carne processada: a Noel. Por sua vez, a empresa de embutidos Argal também lançou uma linha de pratos pré-cozidos com selo vegano. E a La Piara vende cremes vegetais para passar no pão. Eu não sei se você está percebendo: a indústria da carne está abrindo um nicho de mercado vegetariano, como fez a indústria de laticínios anos atrás.
E isso não é uma boa notícia?
Não nego que pessoalmente gostaria de ver que o movimento vegetariano está no auge, porque isso significaria que cada vez há mais pessoas conscientes, comprometidas com a justiça social, a sustentabilidade, com o tratamento justo aos animais e que estão reconsiderando o atual padrão de consumo. Tenhamos em mente que uma grande porcentagem de vegetarianos, e especialmente de veganos, também são ativistas em algum campo. Tudo isso nos torna uma sociedade melhor, que caminha para um futuro mais justo e mais sustentável.
A indústria alimentícia está aproveitando a conotação saudável que envolve o vegano para nos vender os ingredientes mais baratos e menos saudáveis
Mas se olharmos de um ponto de vista estritamente nutricional ou de saúde, o panorama já não parece tão bom. A boa notícia seria que cada vez se vendessem menos produtos pouco saudáveis e mais frutas e verduras, não o contrário, por mais bem rotulados que estejam.
Hoje é fácil ter uma alimentação vegana baseada em produtos ultraprocessados sem pisar em nada além de um supermercado de bairro, conforme vou demonstrar:
- Café da manhã: bebida açucarada de soja batida com cacau adoçado e um croissant vegano.
- No meio da manhã: refrigerante de cola e um sanduíche de pão de fôrma com mortadela vegana e margarina.
- Aperitivo: uma cerveja e amendoins fritos com sal.
- Almoço: arroz branco com tomate refogado e salsichas veganas. Na sobremesa, um sorvete de soja de baunilha.
- Lanche: café com bebida vegetal adoçada e biscoitos rotulados como veganos, por exemplo os Oreo.
- Jantar: croquetes de espinafre veganos pré-cozidos com batatas fritas e veganese. De sobremesa, um iogurte de soja sabor frutas do bosque adoçado.
Aí está, um cardápio 100% vegano que seria impensável há poucos anos por falta de disponibilidade de produtos. Um cardápio no qual o mais saudável que podemos encontrar é o café, se ele não tiver uma bebida vegetal açucarada, é claro. Um cardápio em que o mais parecido com um vegetal é o tomate refogado e o espinafre dos croquetes. E a coisa mais próxima de uma fruta é a amora desenhada no pote do iogurte.
“Vegano” não significa “saudável”
É óbvio que, dada a enorme e crescente oferta, todos esses produtos não estão sendo consumidos apenas pela população vegetariana. Eu gostaria, mas não são tantos. Essas bebidas vegetais adoçadas e os hambúrgueres vegetarianos feitos de cereais refinados, óleo de girassol, 10% de verduras e míseros 5% de um alimento proteico vegetal, estão sendo levadas para casa por muitas famílias que pensam que são escolhas saudáveis. Uma salsicha vegana é amido, gordura de má qualidade, aromatizantes e sal. Mas as pessoas veem o “vê” de cor verde, algumas folhinhas desenhadas no pacote e um “100% vegetal” e acreditam que estão praticamente comprando alface.
E a indústria de alimentos está aproveitando muito essa conotação saudável que envolve o produto vegano para nos vender os ingredientes mais baratos e menos saudáveis que podemos comprar, pois os ingredientes que tornam pouco recomendáveis os produtos altamente processados não são de origem animal: açúcar adicionado em qualquer formato (sacarose, xaropes, melaço, dextrose, glicose…). Praticamente todo o açúcar adicionado é de origem vegetal, com exceção do mel. Gorduras pouco saudáveis como gorduras hidrogenadas, óleos refinados e óleo de palma. Farinhas refinadas e sal. Esse é o quarteto que inunda os produtos altamente processados e os torna insalubres, e o veganismo não está imune a nenhum deles.
A boa notícia seria que cada vez se vendessem menos produtos pouco saudáveis e mais frutas e verduras, não o contrário, por mais que tenham o rótulo vegano
Por isso é importante ter em conta uma coisa: o fato de um produto ter o selo “vegano”, o “V-label” ou qualquer outra legenda que o identifique como produto 100% vegetal só se refere à origem dos ingredientes que o compõem. Não diz absolutamente nada sobre sua salubridade.
Você sabe quais produtos veganos são saudáveis? Frutas, verduras e hortaliças, legumes e seus derivados (tofu, tempeh, soja texturizada), frutas secas, azeite de oliva, sementes, cereais integrais… E quase nenhum deles é rotulado como vegano.
Se você quiser reduzir o consumo de produtos de origem animal e comer de modo saudável, não troque o salsichão por salsichas veganas, troque-o por amêndoas. Não troque as Frankfurt por salsichas ou hambúrgueres veganos, troque-as por leguminosas. Não troque o pudim por uma sobremesa de aveia, troque-o por fruta.
Um alerta para os vegetarianos:
Sim, os vegetarianos também compram esses produtos. E me dá pena ver como um grupo que tinha tudo a favor para liderar o movimento por uma alimentação mais rica em frutas, verduras e legumes locais e sazonais, que é algo que se encaixa completamente com os valores que defende, está obnubilado pelos novos produtos veganos e fazendo festa nas redes sociais sempre uma novo produto vegano ultraprocessado é lançado, com a desculpa de que é ótimo que exista mais oferta, que têm o direito de escolher e pode pelo menos haver alguém que compre a versão vegana em lugar da tradicional, diminuindo assim a demanda por produtos animais.
E eu digo que estamos nos conformando com muito pouco. Estão nos conquistando como clientes com muita facilidade, nós, que somos o reservatório do consumidor crítico e que lemos os rótulos por excelência, estão nos ganhando com um “vê” verde desenhado em uma embalagem. Pense nisso.
Lucía Martínez Argüelles (@Dimequecomes) é dietética-nutricionista, mestre em Nutrigenômica e Nutrição personalizada, TSD e blogueira do portal www.dimequecomes.com
Fonte – Lucia Martínez, El País de 30 de abril de 2018
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