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Quem são os homens que arriscam a vida para cortar árvores

Sem alternativa, migrantes atraídos para a Amazônia na década de 70 hoje ganham a vida derrubando árvores. Muitas vezes em redes que exploram o trabalho escravo

A definição da palavra colono no dicionário, “aquele que emigra para povoar e/ou explorar uma terra estranha”, não define apenas o período colonial brasileiro. Em pleno século 21, o termo é aplicado para as famílias que deixaram o Sul e, principalmente, o Nordeste para se instalar no Oeste do Pará. Ludibriadas com promessas de vida próspera na agricultura, feitas pelo governo em plena ditadura militar, lançaram-se ao desafio de colonizar a floresta. Cinquenta anos depois, abandonados pelo Estado, os descendentes desses colonos tornaram-se reféns do trabalho escravo contemporâneo.

Essa é uma das conclusões do relatório “Por Debaixo da Floresta: Amazônia paraense saqueada com trabalho escravo”, do projeto Rede de Ação Integrada para Combater a Escravidão (Raice). A pesquisa mostra como o governo federal teve um papel ativo ao empurrar gerações de trabalhadores para o ofício de derrubar árvores em florestas que deveriam ser preservadas. “A promessa foi tão grande quanto o tamanho do abandono”, diz o pesquisador Maurício Torres, um dos responsáveis pela pesquisa.

Atraídos e depois abandonados em uma região cercada pela floresta, sem equipamento publico ou amparo social, esses trabalhadores foram jogados em um universo sem perspectiva. Só lhes restou aceitar a primeira oferta. Em um ambiente onde a lei não é escrita, tornaram-se presas fáceis das redes de exploração do trabalho escravo. “O agricultor conhece essa situação [de trabalho escravo], mas tem medo de denunciar e sofrer consequências”, diz Egidio Alves Sampaio, da Comissão Pastoral da Terra. São fartos os relatos de donos de serrarias que ameaçam funcionários que ousam cobrar seus direitos. “Aqui impera a lei do silêncio”, diz Sampaio.

A vida na floresta em destruição

Como tantas outras estatísticas brasileiras, os dados sobre o colono que ganha a vida derrubando árvores na Amazônia são limitados. O pouco que se sabe vem da experiência de fiscais do trabalho e outras instituições não-governamentais. Desde 2003, 931 trabalhadores, pagos para derrubar árvores, foram resgatados no Pará – pouco mais de um quinto dos resgates no setor no Brasil. A maioria tem entre 15 e 30 anos, segundo os registros dos fiscais, mas também há idosos e crianças exercendo a atividade.

No Pará, a missão não é desmatar árvores em grandes quantidades. O foco são as toras mais raras com apelo no mercado internacional, como o ipê. Uma vez que não conseguem tirar sustento da terra, os colonos passam a aceitar a oferta para ganhar a vida derrubando árvores dentro de terras protegidas. A oferta de trabalho costuma vir de vizinhos, em geral, ex-empregados de madeireiras – os chamados “toreiros”.

Sem nenhum direito trabalhista, permanecem incomunicáveis mata-adentro por semanas ou meses, como numa prisão sem grades. Quem dita a jornada é o sol. Enquanto tiver luz, o que acontece entre às 4h30 da manhã e às 18h30 da tarde, a motosserra fica ligada.

Os riscos no interior da floresta aumentam progressivamente pelas péssimas condições de trabalho, feito sem nenhum tipo de equipamento de proteção, como óculos, uniforme, capacete, botas e repelente. O equipamento é essencial para protegê-los não só de acidentes, mas de animais peçonhentos.

“Acontece muito de qualquer mexidinha que der na tora, no trator, decepa dedo, decepa mão do ajudante. A tora rola e esmaga o cara”, diz um dos trabalhadores resgatados no relatório que constatou a exploração do trabalho escravo.

O cenário mais chocante para os fiscais do trabalho, diz o pesquisador Torres, é o barraco que faz a vez de alojamento. Sem paredes e erguida com toras menores, protege os trabalhadores apenas com uma lona. O fogão costuma ser uma fogueira com um barril de tinta ou uma panela velha.

As carnes, caçadas ou trazidas pelos próprios funcionários, repousam desprotegidas em varais de barbante. Nos troncos ficam as redes, em menor número que o de trabalhadores – para alguns, só há o chão. A água, muitas vezes captada da chuva, fica depositada em caixas improvisadas sem tampa ou tratamento. Depois de ganhar uma camada de lodo logo nos primeiros dias, ela servirá para matar a sede e cozinhar pelos longos meses de trabalho.

A falta de pagamento também foi uma constante identificada pelo estudo. Em uma das operações do Ministério do Trabalho, os auditores perguntaram aos resgatados qual era seu pior medo ao trabalhar na mata. Esperando ouvir respostas como “sofrer acidentes” ou até “morrer”, eles se surpreenderam ao descobrir que o maior medo dos trabalhadores era não receber pelo trabalho.

O começo da colonização

Na década de 1970, famílias de trabalhadores foram instaladas em terras de até 100 hectares, próximas às rodovias federais recém-construídas, as únicas da região e por onde o sonhado progresso chegaria. Com o tempo, novos migrantes surgiram, fazendo a chamada colonização espontânea mata adentro, ficando ilhados dentro da floresta.

O segundo agravante era o total desconhecimento das especificidades da Amazônia. Tanto dos colonos, quanto do governo que dividiu a terra. A experiência que levaram consigo do nordeste não gerou frutos em terras paraenses. Para piorar, os lotes foram traçados no mapa, em tamanhos iguais e retangulares, sem levar em conta uma análise do solo.

Sem a construção de uma estrutura mínima de estradas, escolas, postos de saúde, sistema de crédito e assistência técnica, os colonos ficaram vulneráveis. Para se manter no lugar onde vivem, diz Larisa Bombardi, do Laboratório de Geografia Agrária Universidade de São Paulo, a maioria despiu-se de dignidade sem sequer notar. E foi nesse cenário que os madeireiros apareceram.

Em troca de árvores ou graças a acordos pouco claros com políticos, diz Sampaio, os madeireiros levaram estradas até os colonos e ofereceram outros pequenos favores – como dinheiro para o ônibus, diz Torres. Nessa relação, maquiada de benevolência, o agricultor passou a enxergar o madeireiro como um benfeitor. Desde então, o ciclo se repete.

Ainda hoje, os colonos não têm uma vida digna. Moram em pequenas comunidades sem nenhuma infraestrutura, como escola, acesso à saúde, saneamento básico e eletricidade. Torres questiona: “que chances ele tem de não passar fome se não contar com o favor do madeireiro, que o escraviza?”

Reportagem parte do especial Profissão Madeireiro.

Fonte – Thais Lazzeri, Repórter Brasil de 13 de março de 2017

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