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RS – Um rio, duas margens: tragédia no Vale do Taquari foi maior em lado menos preservado
Por Gabriel Gama – A Publica – 6 de junho de 2024 – Com apenas 31% de cobertura em locais que deveriam ser APP, região viu contraste da destruição nas enchentes no RS
Uma das regiões mais afetadas pelas enchentes que atingiram o Rio Grande do Sul no último mês, o entorno do rio Taquari carece de um tipo de proteção que poderia ter ajudado ao menos a reduzir o impacto da tragédia.
Apenas 31% das Áreas de Preservação Permanente (APPs) – margens dos rios, que são protegidas por lei – estão, de fato, cobertas com vegetação nativa.
É o que revela um levantamento de pesquisadores do Movimento Pró-Matas Ciliares do Vale do Taquari a partir de dados da plataforma MapBiomas.
As APPs são consideradas instrumentos fundamentais para controlar enchentes e deslizamentos e reduzir os impactos de desastres, como o enfrentado pelos gaúchos desde o fim de abril.
O rio Taquari passa por 15 cidades e seu transbordamento levou a enchentes em todas elas.
Segundo a Defesa Civil do estado, 34 pessoas morreram na região e 20 continuam desaparecidas em decorrência das chuvas sem precedentes.
“É inegável a proteção que as florestas exercem sobre as margens dos rios. Essa cobertura vegetal reduz muito a velocidade da água, por conta da resistência provocada pela vegetação, e também previne a erosão do solo. Por conta disso, evita um estrago maior nas porções de terra próximas ao rio”, explica Cleberton Bianchini, engenheiro ambiental egresso da Universidade do Vale do Taquari (Univates) e responsável pela análise.
O Código Florestal, principal lei do país que versa sobre a proteção da vegetação nativa, estabelece o conceito de APPs e define que a dimensão da área a ser preservada nas margens de rios varia de acordo com a largura dos corpos d’água: no caso do Taquari, na maior parte da sua extensão, via de regra, deve ser preservada uma faixa de 100 metros de largura em cada margem.
Já em outros trechos, quando o rio se alarga, as áreas de preservação aumentam para 200 metros.
No entanto, o que se observa na realidade é bem diferente disso.
A própria lei, que passou por modificações e teve as regras flexibilizadas em 2012, permite que essa proteção caia para apenas 5 metros em áreas consolidadas (já ocupadas pela agropecuária, por exemplo, antes de 2008).
A proteção também é reduzida de acordo com a dimensão da propriedade privada, medida pela quantidade de módulos fiscais, que varia em cada município.
Por que isso importa?
Desmatamento histórico e legislação ambiental fragilizada reduziram a vegetação nativa nas chamadas Áreas de Preservação Permanente (APPs), como as margens de rios.
A proteção é considerada fundamental para minimizar danos de chuvas intensas e enchentes.
Além das brechas previstas na lei federal, leis estaduais também têm afrouxado a proteção das APPs.
Em 9 de abril, poucas semanas antes de a catástrofe se instalar no estado, Eduardo Leite, governador do Rio Grande do Sul, sancionou a Lei nº 16.111, proposta pelo deputado estadual Delegado Zucco (Republicanos).
A medida tinha o objetivo de autorizar o uso das APPs para irrigação de campos agrícolas, flexibilizando ainda mais a proteção.
A análise conduzida por Bianchini, feita com dados de uso e ocupação do solo do MapBiomas e obtida com exclusividade pela Agência Pública, calculou que 6.142 hectares às margens do rio Taquari deveriam ser delimitados e protegidos como APPs, de acordo com a legislação federal.
Mas apenas 31%, ou 1.943 hectares, estão realmente cobertos com formação florestal.
Outros 52%, ou 3.232 hectares, são ocupados com um mosaico de agricultura e pastagem, e o restante se divide entre infraestruturas urbanas, formações campestres e outras áreas não vegetadas.
A análise abrange toda a extensão de 140 km do rio Taquari, desde sua formação, com a união dos rios Carreiro e Antas, até o deságue no rio Jacuí.
“Do que deveria ser 100 metros preservados [em cada margem], nós temos 5 ou 10 metros apenas, e isso não dá sustentação para todas as funções que as matas ciliares exercem. Ou seja, é como se fosse um canal concretado, só que, ao invés de concreto, é solo [exposto] dos dois lados”, afirma Bianchini.
Sem vegetação, que promoveria a infiltração da água no solo, a mancha de inundação acaba se espalhando mais facilmente.
O contraste na paisagem pós-desastre: devastação e preservação nas margens de um mesmo rio
O importante papel de proteção que as APPs desempenham ficou evidente, aliás, durante a tragédia recente.
Um dos afluentes do Taquari, o rio Forqueta – onde uma ponte que ligava as cidades de Travesseiro e Marques de Souza cedeu com a cheia – tem um trecho em que as duas margens se encontram em condições opostas.
De um lado, havia uma porção significativa de vegetação nativa e, no outro, campos desmatados e casas.
O resultado: com as chuvas e a inundação, a margem que seguia a determinação de APP se manteve intacta, enquanto a outra foi arrasada e deixou o solo totalmente exposto.
“Quando olhamos para fragmentos maiores [de vegetação], nós vemos que eles estão protegidos. É a prova de que, se você tem porções mais largas, a proteção acontece”, diz a bióloga Elisete Freitas, professora na Univates e integrante do Movimento Pró-Matas Ciliares do Vale do Taquari.
Não faltam outros exemplos no Vale do Taquari em que a conservação das matas ciliares foi determinante para minimizar os danos causados pelo desastre.
No entorno da Ponte de Ferro, que ligava as cidades de Lajeado e Arroio do Meio e que também colapsou com a inundação, o contraste se repete.
Nas margens em que há vegetação, a destruição é mínima, enquanto os trechos que abrigavam terras com atividade agrícola se encontram destruídos.
Cleberton Bianchini reforça essa percepção:
“A porção de vegetação está toda ali, não teve deslizamentos nem movimentos de massa. Não aconteceu a erosão que se vê do outro lado do rio, onde havia uma pequena faixa de vegetação, praticamente nula. É um exemplo muito bom da situação com e sem mata, no mesmo ponto do rio. Como o lugar não tem proteção do relevo, as duas margens sofrem a mesma ação de velocidade [da água]. Dá para ver nitidamente que em um lado está tudo bem e no outro aconteceu uma tragédia gigantesca, os taludes da margem erodidos, completamente expostos, o solo caindo”.
Ponte de Ferro que desabou no encontro do rio Forqueta com o Taquari.
Em uma margem, a vegetação se manteve em pé e, na outra, o cenário é de destruição
Outro caso que mostra a importância das APPs é a faculdade onde Elisete Freitas atua.
“A própria Univates é um exemplo disso. A universidade tem uma porção grande de floresta e quem passa vê que está tudo intacto. A água subiu, sim, mas não destruiu nada. Já nas porções onde não tem vegetação, a destruição é total”, afirma a professora.
“Do que eu vi, só ficou preservado aquilo que tinha faixas muito largas de vegetação, e isso são poucos locais. No restante, não sobrou nada.”
Uma loja da Havan, empresa de Luciano Hang, construída às margens do rio Taquari, em Lajeado, em local onde deveria ser uma APP, foi destruída pela inundação.
Segundo Freitas, não faltaram alertas dos ambientalistas e técnicos sobre os perigos de instalar o empreendimento ali, mas o projeto seguiu adiante e obteve o licenciamento, graças à proximidade de Hang com a prefeitura de Lajeado.
O empresário já afirmou que pretende reconstruir a unidade no mesmo local, ignorando os riscos de novas enchentes.
Reconstrução do RS precisa envolver a recuperação da vegetação nativa, afirmam especialistas
Em estudo divulgado em setembro do ano passado, o Instituto Escolhas calculou os custos necessários para recompor a vegetação nativa no país, segundo a legislação vigente, e alcançar a meta estabelecida pelo Brasil junto ao Acordo de Paris de restaurar e reflorestar 12 milhões de hectares – ainda distante de ser atingida.
Em nível nacional, seria necessário um investimento de R$ 228 bilhões para recuperar essas áreas, com um retorno esperado de R$ 776 bilhões, 5 milhões de empregos gerados e 156 milhões de toneladas de alimento produzidas.
O estudo Estratégias de recuperação da vegetação nativa em ampla escala para o Brasil prevê a recuperação de vegetação em consórcio com o cultivo de alimentos, em sistemas agroflorestais que conciliam o plantio de espécies nativas com aquelas voltadas ao consumo.
Para o Rio Grande do Sul, o Escolhas estima que seriam necessários R$ 20 bilhões para repor o déficit de vegetação no estado, calculado em 1,165 milhão de hectares.
Desse montante, R$ 9,3 bilhões seriam destinados para restaurar APPs e R$ 10,7 bilhões, para Reservas Legais (dispositivo que, também previsto no Código Florestal, estabelece um percentual de área que tem de ser preservado com vegetação nativa dentro das propriedades privadas, dependendo do bioma onde ela está inserida – 20%, no caso do Rio Grande do Sul).
O retorno desse investimento, de acordo com o levantamento, seria de R$ 60 bilhões, com a criação de 300 mil empregos e a produção de 9 milhões de toneladas de alimentos.
Sérgio Leitão, diretor executivo do Escolhas, reconhece que a recuperação de vegetação nativa depende de investimentos vultosos, mas aponta que eles podem ser distribuídos ao longo do tempo e, principalmente, geram retornos importantes e muito inferiores aos custos da remediação de eventos extremos.
“É uma atividade que gera benefícios econômicos, sociais, ambientais e ecossistêmicos. Não faz sentido o Brasil não olhar para isso durante a reconstrução da economia do Rio Grande do Sul.”
Quanto aos desafios para promover a readequação ambiental no estado, cujo bioma dominante é o Pampa, o principal entrave é o alto grau de degradação dos solos já desmatados.
“Existem algumas iniciativas de conhecimento técnico e acadêmico com relação à recomposição do bioma, mas há muitas áreas com baixo potencial de regeneração natural, que seria a forma mais propícia de se fazer a restauração das áreas campestres do Pampa”, explica Eduardo Gusson, pesquisador responsável pelo levantamento dos dados do estudo do Instituto Escolhas.
“O Brasil precisa entender, de forma definitiva, que a infraestrutura natural prestada pelas árvores e florestas deve ser respeitada, ou vamos pagar um preço muito alto em vidas humanas e destruição completa da economia em eventos climáticos extremos, que infelizmente irão se repetir com maior frequência”, analisa Leitão.
Edição: Giovana Girardi
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