Entrevista concedida pela FUNVERDE para a revista HM! sobre as malditas sacolas plásticas de uso…
Treinados para destruir – III
Escola
O que aconteceria se, de repente, você retornasse ao reino animal? Se, como em um sonho, você estivesse só, à mercê das próprias habilidades, enfrentando as intempéries e seres que também tem necessidades a satisfazer? Imerso nas brumas do incerto, certo apenas de que a sobrevivência é o único objetivo?
Sim, porque nos ensinam que reino animal é o lugar da natureza primitiva. O lugar do imprevisível. Dos impulsos e das paixões. O lugar dos instintos. É onde impera a lei da selva, espécie de vale-tudo pela sobrevivência.
O reino animal é o lugar de onde saímos, em busca da segurança. Há milênios, num parto doloroso nossa espécie, separando-se das outras, deixou o reino animal cavalgando no dorso da civilização.
A civilização nos libertou do reino animal. Para trás, ficaram os medos.
Quando a criança, ainda embalada nos devaneios das estórias infantis, chega à escola, passa a conviver com outros grupos. Seu novo grupo social agora é balizado por diferentes códigos que devem ser obedecidos (por aceitação ou coação). Quem obedece, é aceito; quem quebra as regras, arca com a rejeição.
Burro é quem não aprende. Cavalo é o desastrado. Papagaio é quem fala sem parar. Gato é quem pega algo sem permissão. Bagre ensaboado é quem se safa de situações embaraçosas. Cachorro é o mau-caráter. Vaca é o extremo da execração. Galinha ou piranha ou cachorra é a menina que se relaciona com vários meninos. Veado é o garoto de maneiras efeminadas. Perua é quem se enfeita em excesso. Anta é quem não entende. E, pasme! selvagem (quem veio da selva) é quem não tem modos… quem não é civilizado.
Ocorre que burro, cavalo, papagaio, gato, bagre, cachorro e cachorra, vaca, galinha, piranha, veado, perua, anta, selvagem, são todos seres do reino animal. Todos eles, agora, tornam-se adjetivos de negação. Tornam-se referências do que não deve ser feito porque são colocados em oposição aos comportamentos civilizados, socialmente adequados.
Opõe-se o homem ao mundo natural: o que é natural é não-humano. Ou, o homem é de uma outra natureza.
Quando isso é absorvido admite-se, finalmente, que esta natureza não-humana pode ser enfrentada, combatida, subjugada e transformada para nos servir.
A natureza à disposição dos desígnios humanos.
A natureza existe para nos servir, é o recado que a criança começa a entender.
É evidente que ninguém chama outrem de burro, pensando na relação homem/natureza. Tampouco, há um roteiro programado que, hostilizando animais, procura doutrinar humanos para que enfrentem a natureza sem pesar.
Estas coisas não pertencem à esfera do consciente, à esfera do programável. Elas estão formidavelmente ocultas. Elas fazem parte do inconsciente.
No inconsciente, é onde mora o pavor de que sejamos identificados com o reino animal porque ali é o reino das feras, o reino das bestas, o reino das emoções incontroláveis. O reino dos instintos. Já saímos de lá. Manter um corte entre ambos é, portanto, essencial. O deboche é uma forma inocente de deixar as coisas claras: homem é homem, natureza é natureza.
Este mundo sombrio, e desconhecido, nos ameaça.
Porém, quem não gosta de brincar com o medo? O medo excita. E o temor é o combustível do enfrentamento. É preciso temer porque é preciso lutar.
Assim, por etiqueta, não xingamos a natureza, que é quem nos amedronta, mas brincamos de xingar o burro que é quem, no fundo, a representa.
Toda cultura humana que vê o reino animal como possível risco, é incompatível com a proteção ao mundo natural.
Somos treinados para destruir. Podemos nos treinar para agir de outra forma?
Fonte – Luiz Eduardo Cheida, médico, deputado estadual e presidente da Comissão de Ecologia da Assembléia Legislativa do Paraná. Premiado pela ONU por seus projetos ambientais, foi prefeito de Londrina, secretário de Estado do Meio Ambiente, membro titular do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) e do Conselho Nacional de Recursos Hídricos.
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