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Treinados para destruir – IV

Em Tubarão, um peixe descomunal ameaça banhistas inocentes. Após semanas, no filme, e horas de terror, na platéia, a gigantesca máquina de matar é, finalmente, abatida.

O sucesso é tão grande que logo novas versões chegam aos cinemas. Cada uma mais inverossímil e espetacular que a outra.

Na esteira desse êxito, chega às telas Orca, a baleia assassina. Embora orca não seja baleia, tampouco assassina, no filme o animal planeja, persegue e, por fim, executa um diabólico plano de vingança.

Piranha foi conseqüência. Depois dela, Piranha 2, Piranha 3 e, acredite, Piranhas Voadoras! Uma piranha alada, emergindo como um submarino atômico das plácidas águas de um banhado, persegue um atônito pescador.

Naqueles dias, na cidade onde moro, custou muito até que fizéssemos as pazes com o lago local. Foram tempos em que, até um inocente escalda-pés, passou a ser visto como um ato de absoluta imprudência. Ir à praia? Nem pensar!

O imaginário popular convulsionava-se de pavor, pleno que estava de tubarões, orcas e piranhas inexistentes.

As coisas não pararam por aí: Aracnofobia mostrou aranhas inteligentes, grudentas e mortais; Alligator revelou fantasiosos crocodilos, tão sagazes quanto cruéis; Dobermans, os cães assassinos, dispensa qualquer resenha; Anaconda, uma cobra gigantesca, furiosa e igualmente mortífera.

Nada disso é novidade. Hitchcock já inventara Os Pássaros, cuja trama de maldades aladas põe em polvorosa uma pacata cidade. E, antes dele, Moby Dick já povoara de temor as mentes incautas de nossos antepassados, ao apresentar à civilização uma baleia branca, de abastado Q.I., tão imensa que, a seu lado, os baleeiros pareciam pequenas caixas de fósforos, oscilando hesitantes, por entre as ondas do mar.

Redesenhar a natureza, com seres fantásticos e inexistentes, confunde e amedronta. O medo afasta.

Além disso, o medo excita. A excitação vende. E, esta é uma sociedade de consumo.

Já se disse que apenas conhecendo a natureza, podemos amá-la e que, apenas amando, podemos defendê-la. Resumindo: só quem conhece, defende.

E, convenhamos, nesta matéria, conhecer errado é pior que desconhecer.

Claro, o imaginário humano tem a capacidade de fantasiar. Fantasias são um bálsamo contra a áspera consistência do quotidiano. Entretanto, na formação da personalidade humana, é fundamental que se adquira a capacidade de separar o real do imaginário.

Se, mesmo por desinformação, a natureza nos é apresentada de forma distorcida, teremos um entendimento também distorcido do que seja uma relação saudável para com ela.

Atribuir desvios de caráter sabidamente humanos a animais (a Orca é vingativa; o Tubarão arquiteta e executa ataques e recuos táticos) ou atributos físicos e superpoderes a outros (a Piranha tem asas; a descomunal Anaconda locomove-se como um raio e emite sons guturais), reforça uma atitude hostil para com o mundo natural.

A desinformação coloca humanos e o restante do mundo natural em campos opostos: homem versus natureza. Não é mera coincidência…

Somos treinados para destruir. Podemos nos treinar para agir de outra forma?

Fonte – Luiz Eduardo Cheida, médico, deputado estadual e presidente da Comissão de Ecologia da Assembléia Legislativa do Paraná. Premiado pela ONU por seus projetos ambientais, foi prefeito de Londrina, secretário de Estado do Meio Ambiente, membro titular do CONAMA (Conselho Nacional do Meio Ambiente) e do Conselho Nacional de Recursos Hídricos.

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